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domingo - 08/07/2018 - 11:32h
História e pioneirismo

A 1ª travessia aérea sem escalas da Europa à América Latina

Completa 90 anos este mês, feito de italianos que cruzaram Atlântico e pousaram em praia de Touros

Por Evanildo da Silveira (BBC News – Brasil)

Por certo, muitas pessoas que passam apressadas pela praça Carlo Del Prete, no bairro das Laranjeiras, na zona sul do Rio, desconhecem a história do homem que lhe dá o nome e cuja estátua ornamenta o lugar. Mas, ao lado do seu compatriota Arturo Ferrarin, ele é autor de um feito histórico, que dia 5 de julho completou 90 anos: a primeira travessia do Atlântico em avião, num voo sem escalas, entre a Europa e a América Latina. Ou, mais precisamente, entre Montecelio, comuna italiana da região do Lácio, província de Roma, e a pequena cidade de Touros, a cerca de 80 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte.

O historiador potiguar Rostand Medeiros, autor, junto com seu colega Frederico Nicolau, do livro Os cavaleiros do céu – A saga do voo de Ferrarin e Del Prete , conta que os dois decolaram de uma pista de 1.200 metros num pequeno avião Savoia-Marchetti S-64, no dia 3 de julho de 1928, às 18h51, no horário local. Depois de voarem ininterruptamente por 49 horas e 15 minutos, num percurso de 7.188 km, eles pousaram nas areias da praia de Touros, no meio da tarde do dia 5 de julho.

Avião decolou de Montecelio, comuna italiana da região do Lácio, província de Roma, e pousou na pequena cidade de Touros, a cerca de 80 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte, segundo é narrado e documentado - Arquivo Rostand Medeiros

O feito de Del Prete e Ferrarin se insere num contexto histórico, o das décadas de 1920 e 1930, não muito tempo depois do primeiro voo do 14 Bis, inventado por Alberto Santos Dumont, em 1906. Vários países e aviadores queriam realizar viagens pioneiras, bater recordes e viabilizar os aviões como novo meio de transporte.

“Nessa época, a Itália estava dando muita atenção e patrocinando empreitadas aéreas pelo mundo afora”, conta Medeiros. “Entre os empreendimentos estava a construção de um novo aeroplano na fábrica Savoia-Marchetti, em Sesto Calende, na província de Varese.”

Segundo o historiador, o avião tinha a missão de bater dois recordes aeronáuticos de reconhecimento mundial: o de voo em distância e duração em circuito fechado e o recorde de distância em viagem em linha reta. Este último recorde era dos pilotos norte-americanos Clarence Duncan Chamberlin e Charles Albert Levine, que entre os dias 4 e 6 de junho de 1927 decolaram de Nova York com destino a Berlim.

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Eles não chegaram ao destino, no entanto, porque foram obrigados a pousar por falta de gasolina em Eisleben (Alemanha). Mas, mesmo assim, completaram a marca de 6.294 km, algo que jamais havia sido alcançado até então.

Antes disso, entretanto, outros aviadores tinham feito história com seus voos memoráveis. “Muitos pensam que a primeira travessia aérea do Atlântico foi realizada pelo norte-americano Charles Augustus Lindbergh, no dia 20 de maio de 1927”, diz Medeiros.

“Outros apontam, e eu concordo, que os primeiros aviadores a realizarem a travessia do Atlântico foram John William Alcock, inglês, e Arthur Whitten Brown, escocês. Eles partiram da Terra Nova, no Canadá, em 14 de junho de 1919, e chegaram à Irlanda 16 horas depois.”

Já no Atlântico Sul, a primeira travessia realizada com sucesso ocorreu em 17 de junho de 1922, pelos aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, como parte das comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil. Mas eles realizaram a travessia com escalas. Nos 3.041 quilômetros que percorreram, os dois enfrentaram muitas dificuldades e tiveram que utilizar três aeronaves diferentes.

O voo tenso até o Brasil

Para participar desse momento de pioneirismo, a Itália escolheu os experientes aviadores Ferrarin e Del Prete, que deveriam sair de seu país e chegar ao Brasil. Medeiros conta que, depois de decolarem, a primeira parte do voo ocorreu ora com tempo aberto, ora com nuvens.

“Eles deixaram a Itália sobre a cidade Ostia, mas, devido ao peso (por causa da grande quantidade de combustível), seguiram a uma altitude que pouco superou os 100 metros e a uma velocidade média de 180 km/h”, diz.

Somente à meia-noite, hora de Greenwich, 21h de Brasília (ou do Rio de Janeiro, que era a Capital Federal na época), depois de sobrevoarem o Mediterrâneo, avistaram a costa da Argélia. Naquele momento, um vento quente vindo do deserto do Saara provocou um aumento de temperatura da água do radiador, do óleo do motor e da própria cabine.

“Os pilotos passaram pelo Estreito de Gibraltar às 5h20 GMT (2h20 de Brasília), depois de estarem voando continuamente havia mais de dez horas e terem percorrido 1.780 quilômetros”, relata o historiador potiguar. “Eles iniciaram uma curva suave e aberta à esquerda, acompanhando o contorno do continente africano.”

Pilotos passaram por muitos momentos de perigo no voo até o Brasil - Arquivo de Rostand Medeiros

Ainda segundo Medeiros, depois das temperaturas elevadas em parte do trajeto, surgiram nuvens pesadas na altura da cidade marroquina de Casablanca, sendo necessário elevar a altitude para escapar da instabilidade.

Mesmo com essa medida, os pilotos não conseguiram evitar as nuvens, ficando apenas com a bússola para a orientação do voo. Após saírem da área de nebulosidade, a visibilidade melhorou e eles puderam verificar a sua posição. “Os dois, então, se aproximam da costa desértica e Ferrarin se impressionou com a paisagem árida”, diz. “Seguiam a uma altitude de 300 metros.”

Mas as dificuldades do voo ainda não tinham acabado. Medeiros conta que, durante a noite, novas áreas com muitas nuvens apareceram, e, para evitar a instabilidade gerada por elas, Ferrarin e Del Prete subiram gradativamente, mas sem sucesso.

A velocidade média girava em torno de 170 quilômetros por hora e foi vista como “excepcional” pela distância percorrida. Os relatos dos pilotos mostram que entre o final do dia 4 de julho e o início do dia 5, durante o trajeto entre Cabo Verde e o Brasil, o tempo foi piorando cada vez mais e apenas a bússola servia como instrumento de navegação.

Finalmente, depois de 27 horas de voo, devido ao consumo de combustível, o avião estava mais leve, permitindo alcançar a altitude de 4.000 metros e fugir do mau tempo. A manobra não obteve os resultados esperados, no entanto, pois ocorreram fortes turbulências.

Para piorar, não era possível voar mais alto, pois 4.000 metros já é uma altitude considerada acima do limite de segurança que se pode alcançar quando uma aeronave não dispõe de sistemas de respiração autônoma com oxigênio.

De acordo com Medeiros, Ferrarin e Del Prete passaram por um momento extremamente crítico na escuridão da noite. “Diante de fortes rajadas de vento, o S-64 foi muito sacudido, o que alterou a leitura da bússola e fez eles pensarem que aquele seria o seu fim”, explica.

“Já tendo passado da ‘metade do Atlântico’, em meio a uma forte fadiga, molhados e com frio, os dois lutavam para manter o avião no ar. Finalmente o dia amanheceu, melhorando sensivelmente a condição do tempo, aliviando a tensão e tranquilizando os pilotos, pois havia condições para eles aferirem corretamente sua posição sobre o oceano.”

O pouso

O dia 5 de julho ia amanhecendo na costa nordeste do Brasil e as notícias do S-64 não chegavam. Medeiros conta que, às 12h52 GMT (9h52 em Natal), no entanto, os operadores da estação radiotelegráfica da empresa potiguar de beneficiamento de algodão S. A. Wharton Pedroza informaram ter conseguido captar a mensagem de um navio anunciando que os aviadores italianos se encontravam a “50 milhas do arquipélago de São Pedro e São Paulo”, ou seja, em torno de 1.090 quilômetros de distância de Natal.

Com o dia claro, ainda a 4.000 metros de altitude, Del Prete buscou com binóculos o continente. “Às 15h GMT (12h Natal) de 5 de julho, a emoção toma conta da pequena cabine”, diz Medeiros.

Chegada do avião Savoia-Marchetti S-64 em 1928 em Touros foi um grande acontecimento - Arquivo Rostand Medeiros

“Extasiados, Ferrarin e Del Prete se abraçam. Delirantemente observam, somente com a ajuda de binóculos, sinais inconfundíveis de terra. Mesmo com toda emoção, os pilotos ainda se encontravam a mais de 200 quilômetros do litoral potiguar e, devido à baixa velocidade, levariam mais de uma hora para sobrevoarem as praias do Rio Grande do Norte.”

Medeiros diz que naquele dia a população de Natal prestava bastante atenção aos céus, aguardando a chegada do Savoia-Marchetti S-64. “Por ironia do clima e para dificultar a situação dos italianos, desde o dia 3 de julho chovia muito forte no nosso litoral”, conta. “Durante todo dia o 5, a cidade estava coberta por pesadas nuvens e o povo já dava como certo que o avião italiano seguiria para o Recife.”

Após alcançarem o litoral, no entanto, os aviadores vagaram por várias áreas. “Retornaram à região, onde avistaram primeiramente a costa brasileira e finalmente, às 16h10, sobrevoaram Natal”, relata o historiador. “Da cabine, Ferrarin e Del Prete viram as pessoas que acenavam com lenços brancos das ruas.” Pouco depois, pousavam em Touros.

A queda

A história não teve um final feliz, no entanto. No dia 7 de agosto, durante um voo de testes em um outro avião, um Savoia-Marchetti S-62 (similar ao S-64), sobre a Baía da Guanabara, no Rio, para onde os pilotos haviam ido de navio, houve um acidente.

A aeronave, que levava a bordo os dois italianos e o suboficial brasileiro Raul Inácio de Medeiros, voava a uma altura estimada em 50 metros, quando, subitamente, numa curva fechada para o lado direito, caiu no mar.

Ferrarin e Del Prete tiveram marca histórica concluída no RN, sob condições difíceis para pouso - Arquivo Rostand Medeiros

Os três foram socorridos e levados ao hospital, mas Del Prete, que tinha fraturado ambas as pernas, além de se queixar de fortes dores no tórax, não resistiu e morreu no dia 16 de agosto. Pelo seu velório, na Embaixada na Itália, passaram cerca de 10 mil pessoas.

Depois, seu corpo foi transportado para seu país de origem. “Para a Itália, o voo dele e de Ferrarin é um dos mais importantes feitos aeronáuticos do país”, diz Medeiros. “Já no Brasil, afora no Rio Grande do Norte e no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro (onde existe a Praça Del Prete), o tema é pouco lembrado.”

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Categoria(s): Reportagem Especial

Comentários

  1. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Reportagem sensacional. Retrata a bravura de homens corajosos e o fascínio de suas conquistas.
    A chegada em Touros, o triunfo que a história, injustamente, não dá o valor merecido, faz- me dizer: Itália, amore mio…hai trovato il mio cuore nella mia terra, in volo diretto, come un uccello.

  2. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Sem tirar nem pormenorizar nada que afeta a grandeza da reportagem.
    Faço minhas as palavras da Sra. Naide Maria Rosado de Souza….!!!

    Um baraço

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  3. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Obrigada, Dr.Fransueldo. Sinto-me honrada.

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