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domingo - 02/06/2019 - 06:28h
A legalidade virou fumaça?

A criminalização da homofobia pelo STF

Por Eduardo Cavalcanti

De início, alerto que entendo que condutas racistas motivadas pela homofobia e transfobia merecem a criminalização. E isto por várias razões, mas destaco quatro.

Uma, porque a própria necessidade de criminalizar o racismo se verifica estampada na Constituição Federal (art. 5º, inc. XLII). Duas, qualquer conduta discriminatória, inclusive e sobretudo aquelas dirigidas à opção sexual, atenta contra direitos e liberdades fundamentais (Constituição Federal, art. 5º, inc. XLI). Três, ocorreu grave omissão por parte do legislador, quando, da feitura da Lei nº 7.716, de 5/1/1989, apenas tornou crime a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Quatro, observa-se, na realidade brasileira, vários e graves crimes motivados pela homofobia e transfobia.

Não resta dúvida, portanto, que condutas lastreadas por fundamentos homofóbicos e transfóbicos merecem resposta penal.

Entretanto, os fins não justificam os meios.No sistema social, as normas jurídicas promovem, como uma de suas finalidades, a resolução de conflitos gerados pelo constante choque de interesses. O sistema jurídico, deste modo, deve possuir harmonia e regras hierárquicas para criar a tão aclamada segurança jurídica. A Constituição Federal, a chamada Lei das leis, representa o alicerce de todo este arcabouço, a partir do qual se constrói as demais normas jurídicas. Portanto, a Constituição Federal, por sua própria natureza histórica, propaga, além de seu conteúdo jurídico, toda uma carga valorativa de uma sociedade.

E, no corpo jurídico do texto constitucional brasileiro, nota-se que a dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, seguindo, desta maneira, as constituições modernas dos países democráticos.

A dignidade da pessoa humana, pode-se defender, significa mais do que um simples princípio constitucional, mas o próprio fundamento do Estado brasileiro, estabelecendo-se, assim, como baliza intransponível para todos os poderes e órgãos estatais. Assim, em raciocínio dialético simples, se a Constituição Federal é a base de todo o sistema jurídico e dignidade da pessoa humana é seu arcabouço fundante, este princípio representa o próprio fundamento de todo o sistema jurídico.

Por óbvio, o Código Penal e as leis penais se inserem dentro desta engrenagem jurídica, ou seja, encontram-se totalmente submissos às normas dispostas na Constituição Federal. Aquilo disforme não se recepciona ou se declara inconstitucional. E este raciocínio serve para toda e qualquer legislação.

DE OUTRO MODO, é de se destacar que há determinado princípio no texto constitucional que, respaldado pela própria ideia de dignidade da pessoa humana, esteia todo o sistema de normas penais, qual seja, o princípio da legalidade penal. O art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal é taxativo: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Ou seja, para se estabelecer crimes e penas, deve-se observar determinada reserva legal. Assim, somente cabe ao legislador esta tarefa. Nenhum outro poder ou função do Estado possui esta missão.

Vale salientar que esta legalidade penal tão estreita é garantia intransponível do cidadão, construída e aperfeiçoada ao longo de séculos. Daí que não se admite qualquer tipo de analogia ou interpretação para criar crimes, ou até mesmo para alargar o alcance de seus elementos normativos descritos na norma.

Recentemente, entretanto, o STF (Supremo Tribunal Federal), por meio da ADO Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão) nº 26/DF, aplicando interpretação conforme, determinou que a criminalização promovida pela Lei nº 7.716/89 (crimes resultantes de preconceito de raça ou cor) alcance também todos os atos motivados por homofobia ou transfobia. O pronunciamento ainda não é definitivo, mas, dos 11 (onze) Ministros, 06 (seis) já votaram favoravelmente.

A decisão do Ministro Celso de Mello, Relator da ADO referida, de inegável  profundidade intelectual e jurídica, centra a ideia na defesa de que o conceito de racismo alcança todas as formas de homofobia e transfobia, não se limitando aos elementos dispostos no art. 1º da Lei Federal nº 7.716/89 (discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional).

Plenário do STF (Foto: Rosinei Coutinho)

Assim, esclarece que não se trata de substituir o Parlamento, a quem cabe a exclusiva tarefa de criminalizar condutas (criar crime e penas), muito menos de aplicar analogia in malam partem (em sentido desfavorável ao acusado de crime).

Portanto, ao sustentar que a homofobia e transfobia são vertentes do racismo, qualquer conduta praticada com esta intenção deve sofrer as sanções da mencionada Lei, que trata a respeito dos crimes resultantes do preconceito de raça ou cor. Eis o trecho do voto do Ministro Celso de Mello: “as referidas condutas ilícitas ajustam-se à noção de racismo em sua dimensão social, não havendo que se cogitar, por isso mesmo, da existência, no caso, de sentença desta Corte Suprema que se qualifique como provimento jurisdicional de caráter aditivo”.

Em sua decisão, Celso de Mello destaca ainda dois argumentos importantes para firmar seu posicionamento: os inúmeros atos de violência praticados em virtude da homofobia e transfobia, inexistindo, no entanto, qualquer proteção específica na legislação penal; a demora injustificável na análise de diversos projetos de lei que tratam acerca da criminalização de condutas motivadas pela homofobia e transfobia. Novamente, merece transcrição de parte de sua decisão: “todas essas premissas que venho de expor autorizam-me a reconhecer a existência, na espécie, de situação de evidente e inconstitucional inércia estatal inteiramente imputável ao Congresso Nacional”.

Entretanto, esta não é uma decisão vanguardista, inovadora ou progressista, como querem defender. Mas, em certa medida, completamente retrógrada, pois, além de seu viés ideológico, acende a possibilidade de destruir um dos principais pilares de garantia dos cidadãos (de todos eles, independentemente de raça, cor, origem, orientação sexual, etnia, religião ou procedência nacional), qual seja, a determinação que confere ao Parlamento a tarefa indelegável de legislar acerca da criminalização de condutas.

Hoje é uma decisão que protege determinado grupo social, que sofre, deveras, com a ausência de legislação pertinente e necessária. Amanhã, a depender do perfil ideológico do Supremo Tribunal Federal, não sabemos o que pode vir. Portanto, sendo inadmissível qualquer postura simbólica e promocional por parte do Parlamento quando se trata de criminalização de condutas, imagine-se o absurdo se esta postura parte do Judiciário, Poder que não compete criar crimes ou ampliar a aplicação dos mesmos.

Ora, não se trata simplesmente de interpretar a ordem valorativa disposta na Constituição, que enfatiza que qualquer conduta discriminatória atenta contra direitos e liberdades fundamentais, para, após argumentar que o conceito de racismo inclui todas as formas de homofobia e transfobia, enquadrar estas duas figuras nos crimes estabelecidos pela Lei nº 7.716/89.

O STF invadiu realmente o campo estatal destinado ao Legislativo.

O artigo 1º da referida Lei é claro: “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O STF, por meio da decisão do Relator na ADO 26/DF, incluiu os seguintes elementos: gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.

Não se defende aqui qualquer preciosismo formalista, mas garantia constitucional que não pode sofrer relativização por meio subterfúgios hermenêuticos.

A intenção do STF, parece-me clara. Veja-se a parte final do pronunciamento do Relator: “dar interpretação conforme à Constituição (…), para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional” (grifo nosso).

O STF determina que o Congresso Nacional aprove legislação que reconheça a homofobia e a transfobia como forma de racismo, independentemente da vontade dos parlamentares? Ou o STF informa que o pronunciamento judicial vale até análise pelo Parlamento de legislação acerca do tema, independentemente do resultado?

Parece-me que o STF impôs ao Legislador aprovar legislação enquadrando a homofobia e a transfobia como hipóteses de crime de racismo. E, enquanto não vem a legislação por demora inexplicável do Parlamento, o Judiciário resolve.

Deste modo, observa-se clara e grave violação ao princípio da legalidade penal, encartado como direito fundamental na Constituição, com a decisão do STF que criminaliza a homofobia e a transfobia.

Eduardo Cavalcanti é promotor de Justiça no RN, mestre em Direito pela PUC/RS e doutorando em Direito pela Universidade de Lisboa

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. François Silvestre diz:

    Belo e convincente texto. Porém, meto o bedelho para algumas considerações. O ativismo jurídico dos tribunais, legislando, vem se consolidando desde 1988, com o silêncio cúmplice do Legislativo. Silêncio e preguiça de legislar. O próprio Ministério Público, do qual faz parte o ilustre autor, é pródigo em requerer ativismo jurídico aos tribunais, principalmente quando as decisões caminham no sentido da acusação proposta. Então, se o ativismo está consolidado para aumentar o peso do Estado sobre o indivíduo, que seja bem vindo quando visa proteger minorias vítimas da truculência preconceituosa da hipocrisia social. Os fins não justificam os meios quando os meios são desumanos. No caso, os meios são humanizantes.

  2. Roncalli Guimarães diz:

    Texto bem fundamentado . Infelizmente temos um poder legislativo ausente e negligente , menos para legislar em causas próprias , por isso são divididos em bancadas da bala , dos evangélicos , do agronegócio , baixo clero(que não serve pra nada )e por aí vai. Trabalho com isso (sou psiquiatra )e sou testemunha do sofrimento psicológico que esses grupos sociais sofrem por agressões homofóbicas. Dessa vez acho que o STF agiu para preencher a lacuna de legisladores incompetentes em reconhecer as reais necessidades da população.

  3. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Artigo muito lúcido. Parabenizo o autor.
    Verdade é que o grito da diversidade sexual nunca foi tão alto como agora em terras brasileiras. É assunto antigo apreciado com olhos que insistiam em optar pela cegueira e, agora, enxergam.
    Se o STF se estende mais ao aplicar ou analisar o que diz a norma constitucional, se o faz sem ferir ninguém, se protege o cidadão que tem o direito de ser quem é e não o que querem que seja, que entendamos como um remendo clamado pelo mundo novo que despreza a hipocrisia.
    Se o remendo fere a lei maior que está última seja logo reformada, e acompanhe a realidade. Que a Casa Legislativa exerça sua função legisladora para que a Casa da Justiça não o faça, transcendendo ao que lhe compete e, o pior, se habitue a transpor o seu poder e não acertando, como dessa vez.

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