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domingo - 03/03/2019 - 08:40h
Deus não perdoará!

A era da insensatez e o caso do neto de Lula

Por Lenio Luiz Streck

Duas frases marcaram a semana: a blogueira Alessandra Strutzel (sim, temos de dar nome aos bois e bois aos nomes!) disse, ao saber da trágica morte do neto de Lula, de 7 anos: “Pelo menos, uma notícia boa”. E a do deputado Eduardo Bolsonaro (Deus acima de todos – eis o slogan da moda): A ida de Lula ao enterro “só deixa o larápio em voga posando de coitado”!

Houve ainda muitos outros “pronunciamentos” de ódio e regozijo pela morte do menino de 7 anos.Até onde chegamos? É o fundo do poço? O que Deus diria disso, ele que, conforme o slogan, “está acima de todos?”

Confesso a vocês – e Rosane, minha esposa e Gilberto, um de meus assistentes, são testemunhas – que esse episódio me abalou profundamente. Embarguei a voz. Triste pela morte da criança e estupefacto e magoado com a raça humana e com a reação das pessoas nas neocarvernas que são as redes sociais. Ah, blogueiros e influenciadores, coachings e quejandos, ah, quantos justos haverá em Sodoma? Abraão será um advogado que lhes conseguirá um HC?

Peço paciência para me seguirem no que vou dizer. No auge do macartismo, em audiência no Senado, o advogado Joseph Welch teve a coragem de perguntar ao senador McCarthy, o homem que deu nome à prática de ver comunismo em tudo:

Senhor, você perdeu, afinal, todo senso de decência?” Pergunto aos odiadores que comemoraram ou trataram com raiva de Lula o episódio fatídico:Senhores e senhoras, parlamentares, blogueiros, twuiteiros, whatsapianos e faceboqueanos: vocês perderam, afinal, todo senso de decência?”

Em tempos de hinos nas escolas, na era das acusações de marxismo cultural (sic), eu poderia muito bem falar aqui sobre o macartismo à brasileira. Não vou. Falo, hoje, sobre nosso senso de decência. Ou melhor, tento falar sobre o senso de decência que perdemos.

Também não vou falar — não diretamente — sobre aquilo que, agora, todos já sabem ter acontecido. Lamentavelmente, morreu o neto, de sete anos, do ex-Presidente Lula. Sobre isso, não há o que falar. É o zero total. É Timon de Atenas, de Shakespeare, propondo o fim da linguagem. Shakespeare, logo ele, que bem sabia que a linguagem é a casa do Ser (Heidegger).

Sou um hermeneuta. Bem sei que a linguagem é, como dizia Ortega y Gasset, um sacramento que exige administração muito delicada. Da palavra não se abusa; não se pode colocá-la em risco de desprestígio. É precisamente por isso que sei que sobre a morte de uma criança não se fala; lamenta-se. Chora-se.

Vou (tentar) falar, portanto, repito, sobre o senso de decência que perdemos. Confesso, é difícil: às vezes, a degradação e a desumanidade são tão grandes que também parecem impor o silêncio. Mas como Auberon Waugh dizia sabiamente, se é verdade que o mundo é um lugar horrível com pessoas horríveis, temos o dever sagrado de incomodá-los sempre que possível.

Eis a minha tarefa: incomodar as pessoas horríveis. O que dizer em tempos nos quais uma legião de imbecis, para usar as palavras de Eco, aproveita-se da morte de uma criança e utiliza as redes sociais para destilar ódio e externar a própria baixeza? É hora do grito de Schönberg: Palavra, oh Palavra, que falta me faz!!!!

O que dizer quando se torna normal que um deputado — o mais votado da história do país — vai às redes sociais, sempre as redes sociais, para dizer que “cogitar” a saída de Lula para o enterro do neto (saída que está prevista na lei, diga-se) “só deixa o larápio [sicem voga posando de coitado“?

Perdemos, afinal, todo senso de decência? Não, não tenho raiva. Sinto é…pena.

O que Deus, que está “acima de todos”, diria? Ou dirá? Deus, que disse que nunca mais inundaria a terra:

nunca mais será ceifada nenhuma forma de vida pelas águas de um dilúvio; nunca mais haverá dilúvio para destruir a terra”.

Deus disse também que sempre que houvesse nuvens sobre a terra, e o arco aparecesse nas nuvens, lembrar-se-ia “da eterna aliança entre Deus e todos os seres vivos de todas as espécies sobre a terra”.

E se o Altíssimo mudasse de ideia? E se Deus dissesse que, afinal, a humanidade deu tão errado que é hora de um novo dilúvio?

E se o critério de seleção para o dilúvio fosse aquilo que se diz, espalha, compartilha, no WhatsApp? Já pensaram? Como falei na coluna passada (ler aqui), que tal se Deus fizer uma PEC e alterar o estatuto do purgatório? Então, a partir de agora, o juízo final será feito por Ele a partir do exame do WhatsApp de cada um (e também do twitter e face). Uma olhadinha e Deus manda para o inferno.

Platão foi o primeiro a denunciar as fake news. Platão mostrou que dizer aos néscios que as sombras são sombras é uma coisa perigosa. Pode ser apedrejado. Como o sujeito que saiu da caverna o foi.

Dizer hoje, a quem está mergulhado nas redes e pensa que o mundo são as redes, que esse mundo é imundo, em que o joio fez fagocitose ruim no trigo, pode também ser perigoso. Denunciar isso pode dar apedrejamento. Por isso, Deus acertou em fazer essa PEC alterando o regulamento do purgatório. O critério é simples: uma olhadinha no whatts e face. E, bingo. Vai para o fogo do inferno!

George Steiner bem dizia: tornamo-nos a civilização pós-verbo. A banalização da linguagem, por meio das redes sociais, corrompe a ideia da verdade. O limite do que é socialmente aceito é colocado cada vez mais longe. O que é verdadeiro? Não há mais critérios. O que se pode dizer? Tudo, porque limites já não há.

A era da técnica e das redes sociais, que prometiam a democratização da informação, desenvolveram um vocabulário próprio; estabeleceu-se um novo jogo de linguagem. No lugar do paraíso da horizontalidade, o inferno da barbárie interior que se exterioriza. (“Hipocrisia, que falta você faz”, diz Hélio Schwartsman.)

Será que a blogueira que comemorou a morte do neto de Lula externaria o pensamento na fila do banco?

No princípio era o Verbo. E no fim, o que será? No final era o whattsapp? O facebook?

Nenhum homem é uma ilha. A morte de todo ser humano diminui a nós, que somos parte da humanidade. Talvez as palavras, sempre as palavras, de John Donne nunca tenham sido tão urgentes.

Mas um alerta: não pergunte, afinal, por quem os sinos dobram. A resposta pode vir pelo WhatsApp.

(Pergunto mais uma vez aos macartistas que recusam as regras do jogo de linguagem da decência e aderem ao jogo das redes, e já têm – sempre – comentários prontos: senhoras e senhores, perdemos todo senso de decência?)

Post scriptum: gesto humano foi, dentre outros, o demonstrado por Gilmar Mendes, conforme noticiou Mônica Bergamo (aqui). Também me emocionei quando li a matéria de Mônica. E entendi melhor ainda a minha emoção anterior.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito

* Artigo publicado originalmente no site Conjur.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. François Silvestre diz:

    Perfeito. Por falar em linguagem, a palavra Deus não significa “aquele que cria”, mas “aquele que fala”. Não é de criação o início, mas de falação. Desde os primeiros conceitos no pré-semítico, passando pelo sânscrito, que esse é o sentido da palavra Deus. Por isso peço permissão para um pequeno reparo. Você escreve a expressão “No princípio era o verbo”, o que põe o “princípio” na condição secundária de adjunto adnominal. Quando na essência o termo é “O princípio era o verbo”. Princípio aí é substantivo (sujeito). E a palavra cria. A linguagem é o principal ou único diferencial entre nós e os “outros” seres vivos. Mas o uso da linguagem de forma estúpida nos aproxima dos que nunca falaram, dos asnos por exemplo. E aí a linguagem aproxima-se do rincho. Seu texto disseca isso de forma magistral. Parabéns.

  2. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    INFELIZMENTE, O QUE VEIO A TONA, TRATA-SE APENAS E TÃO SOMENTE DO FIO DA MEADA DE UM DESCOMUNAL E OBSCURANTISTA NOVELO DITO POLÍTICO, A REPRESENTAR MILHÕES DE CABEÇAS OCAS/SEGUIDORES DA CAVALGADURA E DA FAMIGLIA MAFIOSA E MILICIANA FAMIGLIA BURRO NARIANA, QUE, EM RECINTOS PRIVADOS, COM CERTEZA REALIZARAM FESTAS A COMEMORARAM A MORTE DE UMA CRIANÇA, IGUALZINHO, IGUALZINHO COMO NORMALMENTE OS NAZIFASCISTAS DA ALTA CÚPULA DO GOVERNO HITLERIANO NOTORIAMENTE O FEZ QUANDO DOS ALTOS ÍNDICES DE EXTERMÍNIO DE JUDEUS , CIGANOS, COMUNISTAS E OUTRAS MINORIAS NOS FORMOS DE CREMAÇÃO ALEMÃES.

    O FATO É QUE, MILHÕES DE SEGUIDORES DO NAZI-FASCISMO LATENTE NAZI-FASCISMO À LÁ BURRO NARIANOS ATUALMENTE DISSEMINADO ATRAVÉS DO QUE CHAMAM DE REDES SOCIAIS, POR UM GOVERNO DE CORRUPTOS ANALFABETOS E INCAPAZES, SEGUIDOS CEGAMENTE POR UMA ALCATEIA DE CELERADOS E HISTÉRICOS DITOS ELEITORES…!!

    Aqui no nosso Rio Grande do norte sem Sorte, temos o famosíssimo Sr. JOÃO CLÁUDIO (HONESTÍSSIMO E QUE A VIDA INTEIRA SÓ VOTOU EM HONESTÍSSIMOS E DEMOCRATAS… SIC !), com certeza, esta figura mais que impoluta, comemorou a morte do neto do LULA, e, com toda família presente, quem ouviu foguetório explodindo próximo à sua residencia, pode confirmar.

    Todavia, na tentativa de manter suposta sobriedade e serenidade no terreno pantanoso tereno das aparências (ELES , OS DA EXTREMA SEMPRE VIVEM E VIVERAM DE APARÊNCIAS, POR EXEMPLO HONESTIDADE E SUPOSTA INCORRUPTIBILIDADE, CLARO, SÓ NAS APARÊNCIAS, MESMO POR QUE SEMPRE DETIVERAM O CONTROLE DA INFORMAÇÃO…!!!), ele, simplesmente não vomitou seu sentimento, costumeiro doentio e mavioso sentimento pelos teclados onde se escode pra disseminar sua psiquê mórbida e nazifascista…!!!

    A Alemanha que sabidamente foi ao mesmo tempo vítima e algoz num período histórico em que o terror nazi-fascista abriu asas sobre a nação e o povo engajados no ódio racial e na insensatez política comandados por um doente, obtuso e insano tal e qual o nosso BURRO NARO. Houve por concretamente, conhecer seus efeitos deletérios efeitos ao longo do ´seculo XX, infelizmente, só assim, apreendeu e apreendeu sobre o fardo e a responsabilidade de administrar o que chamam de liberdade de expressão, tanto que figuras tais que tais, com certeza seriam proibidas de vomitar, através de qualquer meio público de comunicação, mormente sandices à seu prazer no teclado das internet’s da vida lá administrada…!!!

    Um baraço

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  3. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Parabéns, Lenio Luiz Streck! Artigo vigoroso, sublime e verdadeiro.
    Parabéns, François Silvestre, ” o uso da linguagem de forma estúpida nos aproxima dos que nunca falaram, dos asnos por exemplo.”

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