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domingo - 02/07/2017 - 10:22h

A janela de Jacinta

Por François Silvestre

Januário nunca se conformou. Depois de dez anos de namoro, dois de noivado e quarenta e cinco de casamento, no que lá se vão quase sessenta anos, ele não conseguiu acostumar-se.

No começo do namoro, anos Cinquenta, era até um bom arranjo. Não fosse aquela mania, mais difícil teria sido conhecer ou aproximar-se de Jacinta.

O pai da moça, coletor de rendas, não dava trela. Sua mãe, dona Fátima, tinha a língua mais temida do lugar. Chegar perto de Jacinta era sonho de muitos daqueles rapazes.

Januário, vulgo Jojoba, era beque da Seleção da Cidade. Domingo com futebol virava festa, se o time recebesse o visitante. Quando a Cidade ia jogar fora, os Domingos ficavam sem graça.

Não havia campeonatos. Só amistosos, que quase sempre terminavam com muito bofete e olhos roxos. O árbitro voltava do campo, quase sempre, mancando ou desfeitado.

Juiz da comarca ganhava pouco e promotor menos ainda. Vereador não tinha salário e prefeitura não era viúva alegre. Polícia impunha respeito e bandido era minoria.

À tarde, o jogo. Porém, desde cedo os jogadores já se vestiam a caráter. Terminada a missa do Domingo, a praça enchia-se. Os titulares desfilavam de bicicleta, ao redor da praça, de camiseta, calção, meiões e chuteiras.

Se aparecia na Cidade um visitante, a serviço ou de férias, e soubesse jogar, seria escalado. Mas era segredo absoluto. Pois um time enxertado não legitimava a vitória. “Só ganhou porque tinha enxerto”, diziam os adversários.

Um desses enxertos, Vicente de Macaíba, trazido por Zé de Ossian, fez sucesso da Cidade. Até Jacinta andou de quebrantos por ele. E ele por ela. Um galego alto, lazarino, andava sem tocar os calcanhares no chão. Goleador.

“O time deles tava enxertado”. Disse o treinador de Alexandria, após sofrer uma goleada de três a zero.

Para sorte de Jojoba, um dia Vicente se mandou. Jacinta voltou os olhares para o craque de casa, que não faz milagre nem gol, mas está à mão.

Da janela, Jacinta fez sinal. O primeiro encontro deu-se na quermesse da barraca do Azul, apesar de Januário ser torcedor do Encarnado. Sua emoção foi tal, que o azul avermelhou-se. Ao toque das mãos o tremelico em cima e o tição de fogo embaixo.

Em Jojoba, até hoje, foi sempre paixão. Esmorecida é verdade, mas suficiente para disputar com a janela a preferência de Jacinta. Nesses anos todos, desde o namoro, Jacinta passa suas tardes ali, com os braços na soleira, de olhos na praça.

O nome foi homenagem da mãe a uma das crianças que viram a virgem na Cova da Iria, em Fátima, no Concelho de Ourém. Contrário dela, Jacinta nunca se teceu da vida alheia. Mesmo sendo vítima das línguas enciumadas. Desde os tempos de Vicente de Macaíba.

A janela inferniza o ciúme de Januário. Toda noite, espera pacientemente o sono hospedar Jacinta. Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Através da janela de Jacinta, o nosso François Silvestre nos enleva e nos leva ao mais puro êxtase nas trilhas regozijantes trilhas do enunciado pelo palavreado da linguagem de outrora, assim como à um estado de reminicências pra lá de benfazejas.

    Tal e qual um cineasta das gerais, François nos brinda com impagáveis imagens de um tempo que não volta mais, e, que só reluz através de memórias e retinas do télurico e interiorano homem que, felizmente, ainda persiste e não desiste de mim.

    François é o que se pode chamar deveras de bom provinciano, àquele que através de seus escritos/artigos e crônicas de domingueiras palavras, emana como ninguém a simplicidade, a bonomia e a inteireza de caráter.

    Por obra e graça do talento e da memória de François, não raro,todos os domingos temos aula de sociologia política, tradições e costumes de alguém, que, expressa como ninguém e sem saudosismo barato, o significado da intraduzível e brasileira saudade.

    Assim, da mesma janela que inferniza o ciume de Januário, eclodem imagens que nos traz, nos leva e nos enleva em viagens que só o talento, a memória do cronista e “cineasta” François Silvestre pode nos brindar.

    Caro François, obrigado pela indizível e impagável viagem que me levaste à lugares que só o passaporte por ti emitido e autorizado, neste momento, poderia me guiar.

    Um baraço

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  2. João Claudio diz:

    ”Juiz da comarca ganhava pouco e promotor menos ainda. Vereador não tinha salário e prefeitura não era viúva alegre. Polícia impunha respeito e bandido era minoria.”

    Todos se respeitavam, todos eram educados/civilizados e todos eram felizes e não sabiam.

    O tempo foi passando, ninguém respeita mais ninguém, a educação passa ao longe, a civilidade manda lembranças e a felicidade é: ainda não ter sido assaltado, um familiar não ter sido assassinado pelos dois da moto, não ter a sua casa invadida por bandidos, sair de casa para trabalhar ou passear e voltar sã e salvo, não ter um filho(a) viciado em drogas, trabalhar para o estado e receber o salario em dia.

  3. Amorim diz:

    Que saudades me despertou, obrigado.

  4. naide maria rosado de souza diz:

    Viajar no tempo, bom demais! Não lembro desde quando deixei de ouvir o encarnado…a cor do vermelho. Saudades !

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