• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 02/01/2011 - 10:46h

A paz que não queremos


Desembarcamos em um novo ano. Os computadores domésticos e profissionais já assinalam o envio e a entrada de milhões (ou bilhões) de mensagens aspirando e desejando invariavelmente o mesmo substantivo: a paz.

Nesse período, as igrejas de todas as crenças e os profitentes dos mais diversos credos afinam-se num único discurso: um pedido de paz.

Santa hipocrisia ou pura hipostasia…

Esse desejo de paz, no plano da convivencia social e religiosa, tem muito de hipocrisia e hipostasia. Todos sabem que hipocrisia significa fingimento, simulação, falsidade. Didaticamente, a hipostasia, na filosofia contemporânea, caracteriza-se pela atribuição de existência concreta e objetiva a uma realidade fictícia, abstrata, restrita à incorporalidade do pensamento humano.

Quando as pessoas desejam paz, convivendo desarmonicamente, confirmam-na apenas como uma ficção, um objeto recôndito do pensamento, alojado apenas nas ondas cerebrais, muito distante das ações e das motivações existenciais.

A paz é sinônima da tranquilidade pública; da concórdia, da harmonia. Se assim o é, como vivenciar plenamente a paz entre os católicos, quando a hierarquia e os cânones da Igreja proíbem o batismo das crianças havidas de pais solteiros ou nascidas de pessoas não matrimoniadas nos seus costumes? O que dizer da intolerância da prelazia com os descasados e divorciados, impedidos do sacramento da eucaristia? Como Cristo denominaria o pagamento por simples pedidos de intenções de missas? É justo o pagamento por uma oração? É devida a cobrança para participar das associações de certos santuários ou de determinadas instituições mantenedoras de canais de televisão? Como podemos realmente almejar a paz se endossamos essas orientações tão excludentes?

Entre os pentecostais, o alcoolismo e o homossexualismo são tidos como manifestações demoníacas. A santidade, para algumas dessas igrejas, somente é medida ou demonstrada pelo tamanho da doação do devoto.

Pratica-se, com muito gosto, a teologia da prosperidade e a simonia (a venda de coisas sagradas). A televisão anuncia a cada minuto, nas primeiras horas da manhã, a cura das doenças espirituais e a salvação das almas, tudo com preço fixado, a gosto do pagante. Ainda se pode desejar a paz nessas circunstancias?

Entre os evangélicos, vigora o entendimento de que somente serão salvos 144.000 crentes autênticos. É a leitura radical do livro do Apocalipse, escrito por João. Somente em Natal, existem mais de duzentos mil evangélicos. Quem desses será salvo? Quem fará essa separação? Podemos, nesse clima desarmônico de seleção, desejar reciprocamente paz?

Nem me atrevo a falar nos demais setores sociais ou profissionais. Fico apenas no campo religioso, para não ter que relatar desentendimentos graves entre os políticos, na Ordem dos Advogados, na classe médica, no Poder Judiciário etc.

A paz haverá quando as igrejas e as pessoas se preocuparem unicamente com a perfeita comunhão entre o seu pensamento benigno e as suas ações. Não adianta desejar a paz se o seu coração age como se estivesse em guerra. Haverá paz, quando "a paz de Deus domine vossos corações", como dizia São Paulo (Colossenses, 3:15). Como desejar a paz, se fazemos adversários gratuitos e tecemos críticas indébitas? Somos construtores da paz quando produzimos pensamentos contraditórios e arremessamos pedras da incompreensão sobre outros irmãos? Que paz adviria quando usamos de sarcasmo, agressividade e menosprezo pelos nossos semelhantes?

Pelo visto, não queremos paz, embora falsamente desejamo-la para o próximo nas nossas mensagens de fim de ano. Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos.

Como ensinava Buda, com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo. Teremos paz, entretanto, se guardarmos a serenidade e se atuarmos na extensão do bem, porque, como disse Chico Xavier, “resguardando a consciência tranqüila, terás nos recessos da própria alma a paz de Cristo que ninguém destruirá”.

Para todos nós, Shalom!

Marcos Araújo é advogado e professor universitário.

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Categoria(s): Fred Mercury

Comentários

  1. André Lima Batista diz:

    Belo ensaio. Culto, algo instigante e absolutamente verdadeiro.

  2. LIA QUEIROZ diz:

    E X C E L E N T E ARTIGO, RESUMIU COM MUITA PROPIRIEDADE NOSSOS COMPORTAMENTOS DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E FALSO CRISTIANISMO! NA VERDADE A INSTITUIÇÃO RELIGIÃO NADA MAIS É DO QUE OS SEPULCROS CAIADOS A QUE SE REFERIA JESUS, LIMPOS, BELOS E PORTENTOSOS POR FORA E CHEIOS DE PODRIDÃO POR DENTRO!!!

  3. Paulo Menescal diz:

    É por isso que faço minhas orações diretamente com o “chefe”.
    Igreja é mais um comércio e seus “donos” são comerciantes vorazes.

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