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domingo - 03/05/2020 - 16:24h

Acorrentados

Por Paulo Mendes CamposQuem coleciona selos para o filho do amigo;

quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava;

quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho;

quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia;

quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre;

quem se ri das próprias rugas;

quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental;

quem procura na cidade os traços da cidade que passou;

quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada;

quem costura roupa para os lázaros;

quem envia bonecas às filhas dos lázaros;

quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira;

quem manda livros aos presidiários;

quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio;

quem escolhe na venda verdura fresca para o canário;

quem se lembra todos os dias do amigo morto;

quem jamais negligencia os ritos da amizade;

quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona;

quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga;

quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos;

quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças;

quem guarda as cartas do noivado com uma fita;

quem sabe construir uma boa fogueira;

quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos líquens;

quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência;

quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição;

quem se desata em sorriso à visão de uma cascata;

quem leva a sério os transatlânticos que passam;

quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz;

quem de repente liberta os pássaros do viveiro;

quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo;

quem julga adivinhar o pensamento do cavalo;

todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

Paulo Mendes Campos, cronista mineiro falecido em 1991 aos 69 anos de idade.

* Essa crônica já foi postada no dia 28 de janeiro de 2007, no endereço do blog anterior. Republiquei-a no dia 31 de dezembro do mesmo ano e, hoje, novamente. Tenho minhas razões e acho que não contrario os webleitores, para publicá-la de novo.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Carlos Andre Gomes de Araujo lima diz:

    Excelente chamado à reflexão.

  2. Fransueldo vieira de araujo diz:

    Paulo mendes campos, representa um ciclo da nossa historia, quando (apesar da censura) ainda realmente tinhamos escritores, cronistas que nos embeveciam e nos levavam a reflexao, atraves da beleza, densidade e da profundade dos seus textos e escritoss!

  3. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Linda crônica que conversa com o coração. Beleza! Publique-a quantas vezes a sua razão clamar porque teremos a felicidade de escutar.

  4. Aurineide diz:

    Me identifiquei em vários itens! Muito bom, nesses tempos de cegueira racional!

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