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domingo - 24/05/2020 - 08:22h

Ansiedade e pânico numa sociedade que impõe o ‘ser feliz’

Por Roncalli Guimarães

“O meu coração está acelerado; os pavores da morte me assaltam, temor e tremor me dominam; o medo tomou conta de mim”. Essa narrativa não é de um paciente no consultório psiquiátrico ou de algum consultório de um terapeuta, trata-se de texto bíblico do livro dos Salmos, escrito possivelmente há 1.400 anos antes de Cristo.

Assim como esse relato bíblico que narra conturbado período da saída do povo de Israel do Egito, outras descrições na literatura também tratam desses sobressaltos. É o caso de Giovanni  Boccaccio no seu clássico Decamerão – escrito no período renascentista, século XIV. Ele descreve a tragédia da peste negra que assombrou a Europa (não é um livro erótico como muitos imaginam) e narra logo no seu início o pânico e ansiedade vividos pelos florentinos na época.Ansiedade e pânico acompanham a história do homem, estão inseridas na evolução da sociedade. O medo faz parte do arsenal de sobrevivência. A ansiedade é um mecanismo natural e adaptativo ao perigo, uma forma de se antecipar para programar respostas de defesa. Sem ele, com certeza, não teríamos chegado onde chegamos.

O reconhecimento de pânico e ansiedade como entidades nosológicas surgiram a partir de observações clínicas no período moderno. Antes, sintomas de pânico e ansiedade eram descritos em situações de instabilidade como em períodos de guerra, fome devido a prejuízos de colheitas ou no surgimento de doenças de caráter coletivo como as “pestes.”

Após a revolução industrial houve um recrudescimento desses motivos psicológicos para desenvolvimento de transtorno de pânico e ansiedade. Houve um momento de “segurança” em relação ao futuro, porém novos motivos surgiram com a mudança da nova ordem mundial.

Necessidades de pertencimento social, adequação a modelos sociais determinados, sensação de inadequação a padrões impostos por propagandas que estimulam consumo de industrializados ou de “industrialização” e busca de um corpo perfeito mexem com o indivíduo. Também temos o esforço para retardar o envelhecimento físico, necessidade extrema de produzir, de acumular riqueza para garantir felicidade futura, a crescente relação incestuosa com o tempo onde não temos o direito de cultuar o ócio saudável, não podemos parar para pensar porque tempo é dinheiro e não interessa se isso cause prejuízo às relações sociais.

A nova ordem impõe suas regras onde a vida é secundária ao capital ou subserviente a ele.

Novas profissões surgiram enxergando o adoecimento das pessoas e a queda da  produtividade. É o caso do “coaching”, que tenta mostrar que a felicidade é possível quando aprendemos a usar nosso potencial neural de forma adequada, utilizando conhecimento de neurociências e filosofia dos estoicos e meditação dos budistas, o que pode ajudar, mas nunca será formula da felicidade.

Os valores do pensamento filosófico ocidental e oriental antigos não cabem no nosso mundo acelerado e competitivo moderno.

Nesse contexto sabemos que o homem desde o tempo da dominação dos hebreus pelos babilônios, como descrito em texto bíblico, é o mesmo homem da era da alta conectividade do 5G. Temos o mesmo genoma e mesmos circuitos cerebrais para ativação da ansiedade e pânico.

A ansiedade e pânico são doenças crônicas, limitantes, que causam sofrimento psíquico apesar de não causarem risco a vida. Medo irracional e desmotivado de aparecimento súbito ou sensações de perigo iminente que podem estar associados a sintomas físicos como palpitações ou falta de ar, fazem parte dos critérios. Isso tem tratamento e se tem, tem eficácia? Sim tem tratamento.

Pesquisas em novos medicamentos e novas técnicas de psicoterapia mostram resultados surpreendentes mas não podemos ser relapsos e deixar de esclarecer que o homem é na sua essência um ser sociável. A base da sua evolução foi o desenvolvimento da linguagem tanto falada, como escrita ou mesmo corporal.

Nascemos com receptores em todo corpo, que funcionam como sensores que detectam num simples abraço, aperto de mão, ou num olhar, toda uma resposta emocional, algo que não podemos obter da mesma forma através de celulares.

A tecnologia ainda não conseguiu criar amor no toque dos teclados.

Roncalli Guimarães é psiquiatra

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Categoria(s): Artigo / Saúde

Comentários

  1. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Dr.Roncalli. Nem posso escrever direito, um dos filhos com suspeita de Covid-19. Está bem, medicado, sem evolução do quadro. Mas, eu não estou. Queria que ele estivesse no meu colo, no meu colo, Dr. Roncalli.

    • Q1naide maria rosado de souza diz:

      Dr.Roncalli. O meu “menino” que gostaria de ter no colo é formado em Direito e, logo após passar no exame da OAB, fez prova para a Polícia Civil, em concurso que exigia o terceiro grau. Desde pequeno, queria ser policial e passou, brilhantemente, no concurso. Não pude impedir a sua vocação, por mais que me aperreasse. Hoje, aos 40anos, tem quase 1.90m de altura. Mas continua a ser o meu menino e o queria no meu colo. Hoje, um ansiolítico me fará bem. Desculpe o desabafo.

  2. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Dr.Roncalli, o exame dele deu positivo.

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