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domingo - 16/08/2020 - 08:42h

Ave, Raimundos!

Por Marcos Araújo

“Mundo, mundo, vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo (…)”.

Carlos Drummond de Andrade

Mês que passou, foi estabelecida uma polêmica nos meios culturais e políticos do Estado após ser divulgada a apresentação de um projeto de lei da iniciativa do Deputado Nelter Queiroz, objetivando trocar o nome da Universidade do Estado do RN (UERN) para “Universidade Estadual Raimundo Soares de Souza”. O propósito era marcar o centenário do nascimento do ex-prefeito de Mossoró Raimundo Soares de Souza, um dos criadores da universidade.

Contudo, devido a uma manifesta resistência no ambiente acadêmico, o deputado proponente retirou o projeto, sem que tal fato represente qualquer demérito ao ilustre alcaide.

É fato que o Rio Grande do Norte teve – e tem! – muitos RAIMUNDOS que marcaram o seu microuniverso cultural, artístico, político e social.Aqui em Mossoró, rapidamente podemos recordar de três RAIMUNDOS do passado que muito contribuíram para sua edificação social, a saber:

1) RAIMUNDO Soares de Souza, Prefeito de 1963 a 1968, foi quem furou os primeiros poços profundos garantindo o abastecimento de água da cidade; depois, trouxe a energia elétrica; estruturou a rede municipal de ensino e criou a primeira Faculdade (que viria a se transformar na UERN);

2) RAIMUNDO Soares de Brito (Raibrito), pesquisador, historiador, arquivista, biógrafo, escreveu mais de quarenta títulos sobre fatos históricos e pessoas do Estado, principalmente de Mossoró e região Oeste, detendo em seu acervo mais de 15.000 biografias; e,

3) RAIMUNDO Nonato da Silva, escritor, historiador, folclorista, memorialista, pesquisador, professor, magistrado, jornalista, técnico em assuntos educacionais, autor de várias obras, um etnógrafo, embora martinense de nascimento, viveu boa parte de sua vida em Mossoró, até se mudar para o Rio de Janeiro, onde faleceu aos 86 anos de idade.

No presente, temos o professor RAIMUNDO Antonio de Souza Lopes, um genial escritor, poeta, biógrafo, editor, um ativista cultural que vem revolucionando o nosso Estado no mundo das letras, publicando suas obras e auxiliando novos escritores na compilação de dados, organização, revisão e publicação dos seus trabalhos.

Um RAIMUNDO também grafou o seu nome com letra de ouro na área do Direito no Rio Grande do Norte. Falo do jurista RAIMUNDO Nonato Fernandes, um dos maiores administrativistas que o país já teve. Foi ele Procurador do Estado e Consultor-Geral do Estado em seis governos diferentes (Dinarte Mariz, Aluizio Alves, Monsenhor Walfredo Gurgel, Tarcísio Maia, José Agripino em dois períodos), demonstrando ser detentor de uma confiança apartidária muito rara.

Tímido e humilde por excelência, lia, escrevia e falava francês fluentemente, sem nunca se vangloriar da sua poliglotia. Como administrativista de escol, conhecia nos originais a doutrina francesa de Maurice Hauriou, Léon Duguit, André de Labaudere, Louis Josserand  e Georges Vedel, porém, nos seus  pareceres se referia com maior frequência aos autores brasileiros, dentre eles Caio Tácito, Hely Lopes Meirelles e Seabra Fagundes, este último também um ilustre norte-riograndense, autor da teoria do controle dos atos administrativos.

O Prof. RAIMUNDO Nonato Fernandes tinha uma “memória de elefante”. Numa época em que não existia internet, ele lia diariamente o Diário Oficial da União e o Diário da Justiça, anotava em fichas todas as mudanças legislativas e os julgados dos Tribunais Superiores, chegando a possuir cerca de cem mil decisões catalogadas. Sempre era consultado pelos outros Procuradores do Estado, e sucessivamente incomodado pelos Consultores-Gerais que lhe sucederam com pedidos para tirar alguma dúvida.

Outro RAIMUNDO muito impactou minha noção de mundo: o meu avô RAIMUNDO Nonato do Rêgo. Um homem simples, semianalfabeto, um sertanejo honrado, um sábio que proferia diariamente orientações sentenciais que eram verdadeiras tiradas filosóficas sobre a existência humana. Seu pensamento sobre o que é o justo e o certo era muito mais sólido e concreto do que a Teoria da Justiça do filósofo norte-americano John Rawls (1971).

Duro feito uma rocha, ninguém podia chegar para ele falando de uma angústia existencial, de uma tristeza, essa que “nos assalta quando tentamos contemplar o abismo eterno do Nada”, como descrito por Arthur Schopenhauer, para que ele não respondesse com um lacônico:

– “Procure o que fazer. Isso é desocupação. Vá quebrar pedra que você se cura!”.

Destemido, quando se falava de morte, dizia com ceticismo:

– “Ela lhe encontrará, mais cedo ou mais tarde, e dela você nunca fugirá!”

Esse seu estoicismo pragmático parecia ser uma réplica do pensamento filosófico do romano Lucrécio (Da Natureza das Coisas). Desprovido de apego material, era um epicurista, por assim dizer, feliz com o pouco que tinha. Falando sobre a natureza humana, parecia ter lido Hobbes, destacando que “a pessoa quando não presta, começa de pequeno, pois espinho logo depois de nascido já começa a furar”.

Dele aprendi sobre o quanto é efêmera a fama e a glória. Pedia sempre que eu lembrasse que tudo passa, e que um dia todas as pelejas e torneios sociais cairão na mais vil das inutilidades. Também com ele aprendi a lição de que o mais importante nessa vida são as pessoas e o sentimento de afeto que nos une, e pedia para nunca perder de vista o olhar humano para o inenarrável milagre da compreensão e do amor ao próximo.

A importância desses RAIMUNDOS – e de outros não citados aqui por falta de espaço – na história da nossa cidade e do nosso Estado é indescritível. O nome diz muito. Raimundo tem origem a partir do germânico Ragnemundus, formado pela união dos elementos ragin, que significa “conselho”, e mundo que quer dizer “proteção”, e significa “sábio protetor”, “aquele que protege com seus conselhos”.

Sou muito grato a esses RAIMUNDOS.

Ave, Raimundos!

Marcos Araújo é professor e advogado

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Rocha Neto diz:

    Faltou um Raimundo na sua tão rica narrativa, talvez por um lapso de memória, uma figura humana que Mossoró nunca o esquecerá, RAIMUNDO SACRISTÃO, tinha como nome de batismo Raimundo Nunes de Oliveira. Quantas histórias nos deixou o eterno sacristão da Catedral de Santa Luzia, auxiliando com esmero as missas celebradas por Monsenhor Mota, Monsenhor Raimundo Gurgel, Monsenhor Humberto Bruening, Sales Cavalcante, Américo Simonetti, Amílcar Mota, é os Bispos Elizeu Simões Mendes, Gentil Diniz Barreto, José Freire de Oliveira Neto e muitas outras figuras do clero diocesano… como é salutar abrir o baú que contém tantas riquezas do mundo pretérito deste nosso velho torrão mossoroense.

  2. Rocha Neto diz:

    Huberto Bruening *

  3. João Claudio diz:

    Quem nunca corrigiu as horas do seu relógio ao ouvir, de hora em hora, as badaladas dos sinos da Catedral de Santa Luzia?

    Quem badalava os sinos era um Raimundo, o sacristão.

  4. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Parabéns, Marcos Araújo! Salve, Raimundos!

  5. Jeronimo Dix-sept Rosado Maia Sobrinho diz:

    Ave, Marcos.
    Salve a sua perfeita escrita e filosofia humanística.

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