• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 05/07/2015 - 06:22h

Balão

Por David Leite

Reconheci-o pelo inconfundível perfil. O manquejado era o que nele havia de diferente. Sem hesitar, parei o carro:

— Balão, entre que deixo você em casa.

— Obrigado. Tenho que andar, foi o médico quem disse.

E seguiu a caminhada, sem mais uma palavra. Fiquei meio confuso, em dúvida se a negativa à carona seria mesmo para seguir a recomendação médica ou uma demonstração de que preferia manter o distanciamento estabelecido desde o tempo do cinema.

Tenho quase certeza de que ele me reconheceu. Não pelo nome, claro. Mas pela inevitável associação de que eu seria um daqueles meninos que frequentavam o PAX. Ah, disso não tenho dúvida! Como, também, sou levado a crer que, enquanto viveu e circulou pelo centro da cidade, ele deve ter sido abordado por muitos dos garotos de outrora.

Sou capaz de apostar todas as minhas fichas de que suas respostas às abordagens devem ter sido quase sempre no mesmo diapasão: curtas e sisudas. Mas, por incrível que pareça, sem expressar uma antipatia gratuita. Dava para perceber que era mesmo o seu jeitão.

Sei que a linha é tênue, porém quem conviveu com Balão, mesmo que de forma rápida e esporádica, entenderá o que eu digo.

Na memória afetiva de quatro ou cinco gerações de mossoroenses, a figura de Balão, certamente, estará bem delineada. Seu corpanzil a nos “recepcionar” à porta do cine, recebendo o ticket de ingresso e conferindo a carteira de estudante com as nossas fuças.

Tudo isso com a mesma rapidez e precisão com que colocava o papel recebido na urna que lhe servia, também, de suporte para descanso da perna. Sem conversa. Se fosse para barrar alguém, o fazia sem alterar a expressão da face. Balbuciava algo que significava o estorvo à sessão. Ponto.

Para nossos olhos infantis, pouca diferença havia entre Balão e as majestosas pilastras do vestíbulo do PAX. A única diferença era que, daquela “coluna” humana, esperávamos o gesto de concordância para transpormos o umbral. Seria daquele guardião que adviria, ou não, o aceno que delimitaria o êxito do final de semana.

Afinal de contas, no correr dos dias, aguardávamos, ansiosos, para vibrar com a pontaria certeira de Trinitty, com a esgrima do mascarado Zorro e com as trapalhadas do sargento Garcia. Ou então com O Gordo e o Magro a nos provocar gargalhadas que quase tomavam o nosso curto fôlego. E outros tantos heróis que povoavam as nossas imaculadas mentes. E, sem o “passe” de Balão, tudo estava perdido.

Isso sem mencionar a ansiedade de nos postarmos à frente daqueles ventiladores gigantes que flanqueavam o palco principal, onde desfraldaríamos nossas camisas “volta ao mundo”, antes do badalar que iria nos aquietar nas disputadas cadeiras das primeiras filas.

Depois dessa acomodação, ao escuro que se seguia, esperávamos o zanzar da lanterna que, vigilante, pastoreava as nossas danações. Diga-se de passagem, danadezas que nada representavam de gravidade: um assobio com dois dedos na boca (que, confesso, nunca aprendi), um chiclete pregado na parte inferior do assento ou um desastroso derramar das alvas pipocas (involuntário, registre-se, pois ninguém era bobo de fazê-lo a propósito).

Tudo isso me veio à mente, quando, ainda acomodado no assento do carro, vi-o seguir, em passos lentos, para as bandas do bairro Pereiros. De relance, passou-me pela cabeça segui-lo para ver onde ele morava e insistir em ajudá-lo com algo por conta da enfermidade. Não reuni coragem.

Ponderei que a vida daquele personagem não poderia sofrer invasão. Deveria permanecer enigmática, como sempre o fora. Sem aproximações nem intimidades. Que tudo seguisse como sua própria identidade: nunca revelada.

Balão. Balão do Pax. Só isso bastou para que ele vivesse seus dias nessa dimensão terrena. Creio mesmo que, na única vez que ele mudou de posição, deve ter sido acolhido pelo porteiro do céu com galhardia: “Entre Balão, e escolha o melhor lugar para assistir (e viver) à película da Paz. Desse bilhete de ingresso você se fez merecedor”.

David de Medeiros Leite – Doutor em Direito e professor da Universidade do Estado do RN (UERN).

* Texto originalmente publicado na Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, N° 43.

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. naide maria rosado de souza diz:

    David de Medeiros Leite. Beleza de crônica. Importante lembrarmos das figuras de nossa infância que deixaram rastros dos bons momentos de nossa vida. Balão era o dono do passe, ou da passagem. Sem seu aval, não curtiríamos a felicidade de assistir filmes que nos encantavam, tão diversos dos apresentados hoje em dia. Decisão correta ao não segui-lo. Há pessoas que elegem estar sós. “Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem”, disse hoje, lindamente , Martha Medeiros…”Sozinha tem mais espaço minha liberdade…tem mais beleza a minha individualidade.” Você respeitou a individualidade de Balão…que subiu e deixou-nos sua lembrança calada, mas amada.

  2. David Leite diz:

    Naide, como sempre acontece, seu comentário é fruto de acurada e sensível leitura…
    Abraços
    David Leite

  3. Adalberto Jales diz:

    Lembro muito, depois de um filme de Tarzan ou dos incríveis lutadores de Kung-Fú, as correrias e uma disputa de esconde esconde entre Balão e a meninada tentando ficar para assistir a outra sessão.

  4. Marcos Aurélio de Aquino diz:

    Caro David, tal você, felizmente vivi momentos semelhantes. Saudades tantas. Abraço e obrigado por me trazer de volta bons tempos de infância ingênua, porém feliz.

  5. Antonio Augusto de Sousa diz:

    David, parabéns pela crônica!

    Ela me fez viajar no tempo, quarenta e cinco, cinquenta anos…!

    E com à viagem, os picolés “premiados”, na calçada do Pax, ou na “Sorveteria Oásis”. Às lutas de “espadas” após às sessões da tarde! Ou, se o filme fosse de bang-bang, os “tiroteios” que se prolongavam da parte de trás do Pax, passando pela Igreja de São Vicente, “trincheira” da Rio Branco, até a Adauto Câmara, o reduto de todos: eu, Roberto de “Seu Ananias”, Carlinhos de D. “Tetê, Netinho e Marcelo de D. Nilda, Caetano de Dorotéia, e mais uns dez ou doze.

    É impossível lembrar, e as lágrimas não descerem…!

  6. francisco César Nascimento diz:

    Lembranças memoráveis amigo David Leite.

  7. David Leite diz:

    Adalberto, Marcos Aurélio, Antonio Augusto e César Nascimento, fico feliz em saber que vocês gostaram da crônica…
    Abraços

    • Carlos Santos diz:

      NOTA DO BLOG – Eu também gostei, David.

      Salve Balão e tantos outros “anônimos” que fizeram e fazem nossa infância/juventude.

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.