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domingo - 28/01/2018 - 06:22h

Cabra-cega

Por François Silvestre

Saltei do ônibus debaixo de uma neblina que imprensava os ossos. O Alecrim, que conhecia de nome e fama, era mais do que pensara.

Maior de tamanho do que imaginara. Mais gente do que jamais vira tantos juntos. Caicó, a maior vista até então, recolhia-se pequenina.

O Diocesano, que fora instrução e casa, seria apenas retalhos brancos na despedida da inocência. Como nos versos de Navarro: “Vestes pretas cobrem meus pecados mortais./ Roupas brancas, nunca mais”.

Depois, para o Centro. Da avenida Rio Branco até a Casa do Estudante. Uma nova morada? Muito mais do que isso. Uma nova vida pedindo arrancho no mundo. E a novidade é a descoberta diária, a cumplicidade horária e o alumbramento que se estabelece nas relações da vida com a adolescência.

Casa do Estudante. A fisiologia, secundária. A vida cobrava sonhos. E o estômago não se presta ao sonhar. Era preciso ignorar a bóia era escassa.  A bandeja dividida em partes, com poucas delas ocupadas. O sonho indivisível, ocupando todas as partes.

Feijão macaça, preto pela idade, em cujo caldo, de água e óleo, boiavam gorgulhos. Na pequena parte, à direita, uma batata doce. Na parte esquerda, um naco de rapadura. Na parte de cima, a “mistura”, que podia ser farofa de ovo. Nos dias de festas, uma posta de peixe ou um guisado de segunda.

Quando faltava água, descíamos ao Paço da Pátria, onde havia um pequeno cacimbão. Com uma panela de alumínio, amarrada à tampa da cacimba, tomávamos banho.

Ao final da tarde ou início da noite, de roupa trocada, saíamos para a rua. Para o colégio, nos dias comuns; para o passeio, nos fins de semana. Não permitíamos a ninguém o direito à piedade. Pobres e dignos, como dizem ser um mendigo espanhol. Éramos iguais, mesmo entre conhecidos e depois amigos de famílias ricas, que estudavam nos colégios particulares.

O Salão Nobre, de pobre nobreza, amparava estudos e entusiasmo.

Nossos colégios eram públicos. Tão bons quanto os outros. Atheneu, Pe. Miguelinho, Anphilóquio Câmara. Geralmente, os mesmos professores. Disputávamos em pé de igualdade as aprovações nos vestibulares.

Desses colégios particulares; Marista, CIC, CPU, Objetivo, eu vim a ser professor, preparando alunos para o vestibular. Alunos que hoje são muito mais importantes do que eu, e ainda me prestam a homenagem com mimos e elogios. Com amizade e generosa deferência.

Muitos já partiram, pois muitos deles eram bem mais velhos do que eu, principalmente nos cursinhos pré-vestibulares.

Era um tempo de luta. Sem heroísmos. Apenas a oferta que a História faz, a algumas gerações, por escolha do destino, do desafio à edificação de sonhos. E não se edifica um sonho coletivo sem desprendimento e generosidade.

Mas havia uma Pátria, mesmo dividida. Nos porões, o miasma de sangue e sêmen no útero fedido dos seus cárceres.

No escondido das ruas, a penumbra da resistência. “Um estranho cheiro de súplica”, dos versos de Alverga Pollari.

Se não a Pátria ingênua de Olavo Bilac, do Hino à Bandeira, uma Pátria mendigando amparo. E a crença da feitura.

E hoje, cadê a Pátria? Aí está. Brincando de cabra-cega. Té mais.

François Silvestre é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. João Claudio diz:

    Apesar dos pesares, das dificuldades e da falta das atuais tecnologias, a gente era feliz e não sabia.

    Quanto à pátria, 99,99% dos brasileiros só a defendem e vestem suas cores a cada anos quando a seleção de futebol participa da copa do mundo.

    Fim da copa do mundo, bandeiras e vestes são recolhidas e guardadas para só serem usadas quatro anos depois. Fato, fato e fato.

    Junho está chegando. Aguardem para ver o país se colorir de verde e amarelo, e todos vibrando e torcendo pela ‘pátria de chuteiras’.

    Ei tô fora.

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