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domingo - 02/08/2020 - 08:04h

Dizer sim, dizer não

Por Honório de Medeiros

O que levou e leva alguns homens a tomarem as rédeas do seu destino, não se conformando com o papel que lhes foi destinado pelas circunstâncias nas quais nasceram e viviam ou vivem, e construírem suas próprias histórias?

Como explicar a história desses homens surgidos ao longo do tempo, que adquiriram brilho próprio escrevendo páginas inigualáveis durante suas existências, quando e se comparadas com as dos seus anônimos contemporâneos?

Homens que não esquecemos, talvez nunca esqueçamos, situados entre a santidade e o banditismo, como São Francisco de Assis e Hitler, Padre Cícero do Juazeiro e Lampião?Teria razão Bertrand Russell, quando afirmou que os movia uma ânsia de grandeza, seguida do consequente impulso à revolta pessoal?[1]

“Ao passo que os animais se contentam com a existência e a reprodução, o homem quer ainda a grandeza, e os seus desejos neste assunto só têm o limite da sua própria imaginação. Todos os homens desejariam ser deuses, se fosse possível, e alguns poucos chegam mesmo a achar incompreensível essa impossibilidade. Este são os modelados, segundo o Satanás de Milton, e combinam, como ele, a nobreza com a impiedade. “Impiedade” não se refere aqui à crença religiosa: significa apenas a recusa de aceitar as limitações do poder humano individual. Essa combinação titânica de nobreza e de impiedade é mais evidente nos grandes conquistadores, mas pode ser encontrada, até um certo grau, em qualquer homem. Ela é que torna difícil a cooperação social, pois cada um desejaria entender essa cooperação como a de um Deus com os seus adoradores, sendo ele mesmo o Deus. Daí as rivalidades, a necessidade de transigências e de leis e o impulso à revolta, donde a falha na estabilidade e, periodicamente, a violência. E, também, a necessidade de uma moral que reprima as anarquias individuais”.

Colocado de outra forma, outro não foi o argumento de Hobbes contra a liberdade absoluta: a defesa do Estado contra as anarquias individuais.

Tal impulso à revolta pessoal, do qual nos dá conta Russel, é o mesmo que levou Albert Camus a se perguntar e responder a si mesmo: “Que é um homem revoltado? Um homem que diz não”.[2]

Mas o que é esse “não”? Camus responde:

“Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim; a partir daí, não; ‘assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você não vai ultrapassar’. Em suma, este “não” afirma a existência de uma fronteira.

(…)

Dessa forma, o movimento de revolta apoia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele ‘tem o direito de…’”.[3]

Recusa em aceitar as limitações ao poder humano individual, e, consequentemente, revolta pessoal: inconformação, por fim. Algo que pode ser encontrado, até certo grau, em qualquer homem, segundo Russel. Até no mais humilde de todos. Mesmo na mais prosaica das circunstâncias. Para o bem ou para o mal.

Inconformação que somente é sufocada quando, dentro de si, ou no confronto com o(s) outro(s), opta-se por ceder às pressões, abrindo-se o caminho para os que forçam a passagem, tão inconformados quanto, ou ainda mais, e bem mais fortes, mais impiedosos.

Inconformados aos quais Howard S. Becker nominou de “outsiders”, ou seja, aqueles de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo.[4]

Transgressores. Desviantes. Excêntricos ou portadores de pensamento divergente, diz Mlodinow, enquanto aponta para uma área específica da neurociência, que estuda os padrões de suas condutas.[5]

Poderíamos denominá-los gauches, em homenagem a Carlos Drummond de Andrade:

“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

“Outsiders”, assim também os nominou o sociólogo alemão Norbert Elias, autor de O Processo Civilizatório, que reintroduziu na discussão intelectual moderna a importância da ação individual na história, bem como a crítica à demasiada ênfase na estrutura sobre o indivíduo, em vigor até então.[6]

Enfim, outsiders[7], divergentes[8], inconformados[9], revoltados[10], transgressores[11], desviantes[12]. Os outsiders, divergentes, não se conformam e se revoltam (o inconformismo é o fermento da revolta), e a revolta os leva à transgressão, ao desvio.

Existentes em qualquer tempo ou lugar, os “outsiders”, esses inconformados, revoltados de todos os tipos e modelos, seja qual seja o credo ou a ideologia, contribuíram para o avanço do processo civilizatório mesmo quando a humanidade sofria em suas mãos, pois aparentemente ainda assim crescemos qualitativamente, e esse é o legado que eles deixaram e deixam para a história: podemos e devemos aprender com nossos erros.

Às vezes até mais do que com nossos acertos.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN


[1] RUSSELL, Bertrand. O Poder. São Paulo: Livraria Martins. 1941. Págs. 6 e segs.

[2] CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record. 12ª edição. 2018. Pág. 25.

[3] Idem.

[4] BECKER, Howard. S. Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar. 1ed. 2008. Pág. 17.

[5] MLODINOW, Leonard. Elastic (Flexible Thinking in a time of Change). Rio de Janeiro: Zahar. 1.ed. 2018. Pág. 212 e segs.

[6] ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar. 1. Ed. 1994. 2vs.

[7] “A person who is not liked or accepted as a member of a particular group, organization, or society and who feels different from those people who are accepted as members” (uma pessoa que não é apreciada ou aceita como membro de um grupo, organização ou sociedade em particular e que se sente diferente das pessoas que são aceitas como membros): dictionary.cambridge.org

[8] Que tem opiniões, pontos de vista diferentes; discordante, oposto (sentido figurado).

[9] Tendência, atitude ou procedimento de inconformado, de quem não aceita condições ou situações incômodas ou desfavoráveis. Tendência ou atitude de não se acatar passivamente o modo de agir e de pensar da maioria do grupo em que se vive.

[10] Ato ou efeito de revoltar(-se), grande perturbação; agitação. POR METÁFORA:perturbação, sentimento de raiva, de náusea que se expressa ger. em atitudes, opiniões mais ou menos agressivas; indignação, repulsa.

[11] Transgredir: não cumprir, não observar (ordem, lei, regulamento etc.); infringir, violar.

[12] Afastamento de um padrão de conduta considerado aceitável; erro, falha.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Q1naide maria rosado de souza diz:

    O gauchismo de Drumond é o ponto de encontro dos grandes escritores, dos que utilizavam o papel e a pena em priscas eras ou uma máquina de escrever, em tempos mais modernos … a verdade é haver neles uma igualdade, acredito congênita, tão lindamente descrita por Cecília Meireles…”Não sou alegre nem triste. Sou poeta.”

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