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domingo - 26/04/2020 - 11:26h

Homem, quem és tu?

Por Honório de Medeiros

Esse homem que o acaso colocou em minha frente é uma incógnita. Nada sei a seu respeito.

Se observo os detalhes que a sua aparência externa coloca ante meus olhos, e concluo algo, posso incidir em um oceano de erros.

Afinal, sob seu verniz de civilização pode se ocultar qualquer ignomínia.Não faz pouco tempo, foi ele gentil com uma criança.

Vi, mesmo, de soslaio, a mãe da criança lhe sorrir complacente, como quem acha muito natural receber, sua cria, as atenções do mundo. O gesto me fez lembrar as contradições do ser humano.

Ele mesmo, o observado, que desarrumou, com um afago, os cachos do cabelo da criança, em outra ocasião, outra circunstância, uma guerra, talvez ordenasse um bombardeio que vitimaria tantos outros sorrisos infantis.

Pode ser que eu não fale a mesma linguagem que ele. Quantas formas há de entender uma só palavra?

Difícil atividade, a dos lógicos, a dos filósofos da linguagem, que pretendem descobrir o meio de diminuir a distância entre aquilo que percebo e o que digo.

Se lhe chamasse a atenção e perguntasse, comentasse algo, poderíamos divergir tanto, e acerca de coisas tão banais…

“Todavia, entre mim e esse homem glacial, sinto todos os espaços vazios que separam os homens”. É como disse Saint-Exupèry, em um artigo para o Paris-Soir, em 1935, contando sua experiência de viajar, à noite, em um trem repleto de mineiros poloneses que voltavam à sua terra natal, expulsos da França pelas contingências da economia.

Vazios semelhantes àqueles expressados por T. S. Elliot, em A Terra Desolada: a angústia da constatação da impossibilidade da comunicação humana; a percepção de sua solidão essencial, primitiva, única. Poderia o amor, esse sentimento tão tipicamente cristão, aproximar os homens?

Desnudar suas almas, lhes fazer não rir, nem chorar, mas compreender, como queria Spinoza?

Dar, a eles, a capacidade de transcender a mesquinha luta pela sobrevivência, que coloca em lados opostos os que deveriam semear juntos?

Ou essa é uma missão utópica, e não há tempo para sentir quando não conseguimos refletir acerca da misteriosa rede de aliciamento e cooptação que nos induz a darmos o pior de nós mesmos em praticamente todos os momentos da vida?

Podemos ter alguma esperança, mesmo depois de tantos milhares de anos de aperfeiçoamento na capacidade de destruir, matar, esmagar, e nenhum progresso quanto a fraternidade humana?

Saint-Exupèry, esse tão injustamente banalizado filósofo da melancolia, da nostalgia, já dissera: “É absolutamente necessário falar aos homens”.

Em sua “Carta ao General X”, escrita em La Marsa, perto de Túnis, julho de 43, para o Le Figaro Littéraire, denunciou: “Ah!, General, só existe um problema, um único, em todo o mundo. Restituir aos homens uma significação espiritual, inquietações espirituais. Não é possível viver-se só de geladeiras, política, orçamentos e palavras cruzadas, não é mesmo?”

Um sentido para a vida.

Teria a vida sentido?

Se nos indagassem: “homem, que és tu?”, teríamos que responder “aquele em cuja biblioteca os livros de poesia perderam seu lugar para os de computação?”.

Meu companheiro anônimo se fora.

Tinha perdido, eu, a chance de lhe falar acerca de tudo isso que poderia nos aproximar ou afastar: a solidão, o sentido da vida…Não seria dessa vez que construiríamos uma ponte entre a clausura de nossas almas.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Mossoró e Governo do RN.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Que bela Crônica! Vem aliviar meus dias nos quais descubro que vaidades e Poder destroem as pontes.

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