• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 20/12/2020 - 05:28h

Jornalismo e literatura

Por Marcos Ferreira

Houve um tempo em que as redações dos grandes jornais (não só dos grandes, lógico) eram quase todas compostas por escritores, muitos desses já bastante notórios e consolidados enquanto expoentes da literatura nacional e estrangeira. Foi assim no Brasil e no mundo todo. Não me animo, cá da nossa parte, a citar os honoráveis nomes dos literatos e medalhões que figuraram na pré-história do jornalismo tupiniquim, posto que são tantos e já muito badalados, porém ouso dizer que foram eles os verdadeiros bandeirantes e desbravadores da imprensa brasileira, figuras de elevado nível de expressão artística e senso crítico que mantinham (não necessariamente nessa ordem) um pé no jornalismo e o outro na literatura.Só muito depois, poucos e hesitantes, começaram a tomar chegada os primeiros colonos — os essencialmente jornalistas — que abraçariam os trigais da vida cotidiana para colher a matéria bruta da reportagem puramente noticiosa. A estes pertenceriam o gatilho das horas, o afã da palavra escrita, a celeridade da notícia fast-food.

Eles fundaram o jornalismo-empresa, a imprensa comercial. Perceberam que a notícia é, antes de tudo, um forte catalisador de interesses, um tipo de moeda corrente. Daí emergiram inúmeros empresários da informação e comerciantes de palavras, que negociam, sobretudo, o que deixam de publicar a respeito de certas coisas e indivíduos. Sim. E desse histórico conúbio entre jornalismo e literatura veio à luz um casalzinho bem-sucedido chamado Propaganda e Marketing.

Como tudo se dobra ou degenera sob a ação do tempo, as novas gerações não deram continuidade à linha ourives ou burilada, em alguns casos até excessivamente rebuscada, que os mais antigos desenvolviam. Mas os pósteros trouxeram a roda (entenda-se velocidade) para dentro das redações brasileiras, antes sujeitas a uma metodologia caduca. Com isso, então, a imprensa adquiriu o poder de não apenas informar, mas até de adestrar o seu público.

Discretamente, portanto, os ditos artesãos da palavra foram deixando (ou convidados a deixar) as redações. Apenas alguns recalcitrantes ainda se mantêm grudados a uma tirinha ou rodapé de jornal. Arrisco dizer que não possuem mais o prestígio de antes e se tornaram tão sem proveito para a imprensa comercial de agora quanto as máquinas de datilografar de antanho.

Se comparado ao repórter de campo, o homem de letras, salvo raras exceções, é um jabuti coxo, uma ave implume na vastidão do espaço. Porque o típico escritor, tanto o de ontem quanto o de hoje, dificilmente possui a dinâmica, a celeridade peculiar ao repórter clássico. Um literato com razoável compreensão de arte escrita gasta vários minutos retocando um paragrafozinho opaco como este, enquanto o jornalista produz uma página inteira num fôlego só. Porque este, ao contrário daquele, assimilou e se realiza com o imediatismo da comunicação, sem, em certas ocasiões, perder tempo com requintes estilísticos ou pudores gramaticais.

Vendo-os em ação, como várias vezes tive a oportunidade de presenciar, parece-me que já se levantam da cama com as matérias pré-redigidas sob as pálpebras, tal é a fluidez com que articulam seus raciocínios, escrevem e se dão por satisfeitos com a forma e o conteúdo que desejam transmitir à população. Bem ao contrário da ritualística e morosidade do literato comum.

Agora, portanto, as modernas redações, em especial no universo da mídia eletrônica, pertencem a esses homens autenticamente jornalistas, pessoas ágeis e objetivas, homens e mulheres dotados de intrínseca vocação e desembaraço, que oferecem ao jornalismo moderno maior consonância e persuasão coletiva. E nem nos choca mais o fato de que alguns (trata-se de minoria) sequer atentem para a cívica diferença que há, por exemplo, entre o emprego de hot dog e cachorro-quente.

Existem aqueles que não se importam, não têm compromisso nem interesse em prestigiar o próprio idioma. Estão sempre macaqueando, principalmente, a língua inglesa. Acham isso uma coisa chique, prafrentex, e fazem uso de toda sorte de estrangeirices.

Há cerca de um mês, vejam isto, um industrioso repórter destas bandas, que também ataca de fotógrafo nas horas vagas, montou um pequeno estúdio fotográfico em sua residência, no Loteamento Três Vinténs, Rua Bom Sucesso, e aí o “Sebastião Salgado” local mandou afixar diante da casa uma luminosa placa com os seguintes dizeres: “Photo Severinu’s, professional freelancer”.

Considerando o lado meramente comercial da questão, talvez uma coisa dessas até pareça razoável. Talvez. Mas, do ponto de vista patriótico, supondo-se que haja algum patriotismo no brasileiro, considero vergonhoso que alguém que sobreviva diretamente da língua portuguesa se permita menosprezar o próprio idioma dessa forma.

É, a meu ver, mais um típico exemplo de quando o complexo de vira-lata sobrepõe o senso do ridículo. Ressalto, no entanto, que este é apenas o meu ponto de vista. E um ponto de vista nada mais é do que a vista a partir de um ponto.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Artigo / Comunicação

Comentários

  1. Magno diz:

    Como é bom ler o grande escritor Marcos. Como disse, certa vez, alguém por esses lados: Marcos é o nosso Machado de Assis! E é verdade. Queiram ou não, ele é o cara. Atualmente, insuperável entre os escritores do Estado! E um cara injustiçado. Marcos já era para fazer parte da Academia Norte-rio-grandense de Letras, dada a sua genialidade já atestada por todos. Valeu, Marcos, e parabéns por esse excelente artigo, vindo da pena de nosso maior nome literário atual.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Magno,
      É muito gratificante para um escritor, ao cabo de um trabalho literário em qualquer gênero, ser coroado com palavras tão estimulantes quanto essas que você me dedicou. Um forte abraço, muita paz e saúde para você neste 2021 que se avizinha.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  2. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    COMO SEMPRE, VINDO DA PENA DE MARCOS FERREIRA, BRILHANTE ARTIGO ACERCA DAS ABRUPTAS MUDANÇAS IMPOSTAS PELA TECNOLOGIA E GRANDE CAPITAL AO JORNALISMO DE OUTRORA, TRANSFORMANDO-O NUMA QUIMERA INFORMACIONAL, BEM AO GOSTO DAQUELES QUE O CONTROLAM DESDE SEMPRE…!!!

    TROÇAMOS PRA QUE A INTERNET E AS REDES DITAS SOCIAIS GERADORAS DE ZILHÕES DE FAK NEWS, MESMO COM TODAS AS ALÇAS DE CONTROLE, POSSAM AO LOGO DO TEMPO E DO AMADURECIMENTO NECESSÁRIOS AO SEU MANEJO E USO COTIDIANO, OPORTUNIZEM UM MÍNIMO DE INFORMAÇÃO DE BOA QUALIDADE, NAS QUAIS O DITO CIDADÃO COMUM, POSSA CONFIAR MINIMAMENTE.

    Um baraço
    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro Fransuêldo Vieira,
      Agradeço pela leitura de meu texto e por sua mensagem tão gratificante e encorajadora. Depoimentos desse tipo me fazem crer, cada dia mais, que esta carpintaria da palavra escrita vale a pena.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  3. Gouthier diz:

    Maravilho a crônica do confrade Marcos Ferreira. Uma inteligência formidável a serviço do saber. Parabéns Marcos Ferreira!!!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Gouthier,
      Muito obrigado pela atenção e estímulo. Um forte abraço e um feliz natal e ano-novo para você. Muitas felicidades, saúde e paz.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.