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domingo - 04/12/2016 - 09:47h

Tá ruço!

Por François Silvestre

Havia um tabelião cá dessas bandas, metido a culto, porque lia aquela revista americana, Seleções do Reader’s Digest, que odiava a palavra comunismo.  Benzia-se quando pronunciava a palavra maldita.

De certa feita, do bar onde bebia, ele ouviu um cigano anunciar a venda de um burrinho. “Veja e pegue, ganjão! Esse jovem e fornido burro, elegante e ruço, braiador e galopante, pela metade do que vale”.

Lá do bar, o “culto” Aluir, cujo nome  dizia significar “aquele que alevanta”, fez graça com o cigano: “Num pode prestar um animal que veio da terra do comunismo, cruz credo!”.

Zé Garcia, o chefe de grupo cigano, estava vendendo o burrinho. Ouviu a besteira do tabelião e resolveu dar o troco. Coisa que ele fazia com sutil esperteza.

“O que disse, ganjão”? Ao ouvir a pergunta, o “doutô” Aluir veio para a calçada e confirmou. “Disse que esse burro veio da terra do comunismo. Você assim falou”.

Zé Garcia não tinha instrução acadêmica, mas era bem instruído nos conhecimentos que angariara dos cordéis e dos violeiros.

E essa é uma universidade dos sertões. Sem profundidade especializada, mas bem abastecida de informações gerais. “Ganjão, eu só disse que o burrinho era ruço e braiador”. Armou a cilada. Aluir completou de peito ancho: “Isso mesmo. Você é de poucas letras, mas eu não. Intendeu”?

O cigano fulminou: “Tá certo, ganjão. Sou mesmo de poucas letras, só quatro delas no ruço do burrinho. No do senhor tem cinco”.

Provocado por Godofredo Lucas, meu colega do Diocesano de Caicó, de quem guardo lembranças e saudade, o texto vai ao Sertão de sabedorias e feiras.

Tá ruço, Godô. Sabedoria por aqui bateu retirada. A desculturação, influências alienígenas das “metrópoles”, burrada cultural, violência, negócios escusos, tudo tem enterrado a sabedoria dos grotões.

Ciganos, não mais. Feiras, extintas. Burros e jegues abandonados nas beiras das estradas. Ninguém os quer, nem de graça.

A cigana Honorina desgrudou-se do grupo e foi ficando por aqui, nunca mais partiu. Dava plantão na feira de Umarizal. Certa vez encontrou Joaquim de Alencar, escorado num balcão da loja de tecidos. Filho de Quinquim dos Cajuais e neto de Bizinha Suassuna, Joaquim era um desses dos quais você fala.

Honorina aproximou-se e propôs. “Ganjão, deixe eu fechar seu corpo; só cinco minréis”. Joaquim retrucou: “Só pago se ficar fechado mesmo”. Honorina: “Eu garanto, se num fechar num paga”.

A cigana pegou-lhe a mão e começou a leitura. Após dizer do passado e do futuro, fez a benzedura do fechamento. Pediu pra Deus o proteger de maus vizinhos.

Fechou a mão do consulente e completou: “Pronto ganjão. Tá fechado o seu corpo”.

Joaquim foi enfiando a mão no bolso “para pagar”, quando soltou um estrondoso peido. “Eita cigana véia! Ficou um buraco aberto. Num pago não”.

Té mais.

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

François Silvestre é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Amorim diz:

    Kķkkkķkkk boa mesmo!

  2. naide maria rosado de souza diz:

    Amei. Boas gargalhadas!

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