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domingo - 01/03/2015 - 10:12h

Viver é humilhante

Por Vicente Serejo

Talvez, e se fosse simplesmente pra repetir, bastaria invocar Mário de Andrade quando queria explicar uns tantos e pequenos mistérios da vida: é defeito de alma. Daí esse destino de guardar coisas velhas, enchendo a casa e a vida. Ou, no jeito sertanejo de Oswaldo Lamartine olhar o mundo, quando dizia que havia nascido com a mesma mania da Casaca de Ouro, o pássaro que, no sertão, leva tudo pro seu ninho, desde que possa carregar no bico. Sai voando, feliz da vida, como se fosse um prêmio.

É como explico essas coisas todas que vivem aqui, nestas salas. Como a revista Status, com a nudez docemente encantada de Dina Sfat meio escondida num resto de pudor. Ou a Playboy com Sônia Braga no esplendor, quando os anos não lhe haviam roubado o viço da carne.

É só por isso, por velhas admirações que teimam viver, que ainda guardo a Veja de agosto de 1978, com a entrevista do cronista José Carlos Oliveira nas páginas amarelas, um homem triste que avisa: ‘Viver é humilhante’.

Devo ao acaso ter conhecido Carlinhos Oliveira aqui em Natal, em 1981, quando veio a convite de Nei Leandro de Castro lançar ‘Um novo animal na floresta’. Na minha vez de pedir o autógrafo, ele escreveu na folha de rosto:

‘Para Vicente Serejo, o cronista que já é ficcionista e não sabe. Um abraço do José Carlos Oliveira, Natal, agosto 81′.

Viu nos meus olhos o espanto, e explicou: ‘Li sua crônica hoje de manhã no jornal. Puxou o exemplar da sua bolsa e pediu que lhe autorizasse usar o argumento.

Naquela manhã de um dia de agosto que não lembro mais, contei a história de um velho sisudo que morava no fim da Rua da Frente, pros lados do Porto do Roçado. Numa pequena casa que substitui por um sobrado para ter um sótão e nele os ratos, todas as noites, na assembleia da assombração.

Ele gostou e citou o detalhe do velho arrastando a sua cadeira de balanço, riscando o chão encardido da calçada. Fiquei vaidoso, mesmo sabendo que ele acabaria perdendo o jornal e esquecendo a história.

Carlinhos já estava com cirrose e mais intolerante do que sempre fora. Hospedara-se na casa de Nei, mas os latidos do cachorro do vizinho mordiam o silêncio e não lhe deixavam dormir. Pediu pra sair e foi para a casa de Emílio Salem, amigo de Nei.

Como queria comprar o Jornal do Brasil, Nei perguntou se o levaria a uma banca. Claro. Levei no meu carro. Comprou o JB, leu a coluna ali mesmo na rua e fui deixá-lo na Xavier da Silveira, na mesma casa onde até hoje mora Ione, a viúva de Emílio.

Em 1978, já era um homem dilacerado, mesmo ainda longe de viver seu grande desespero nos últimos anos de vida, entre 1981 e 1986, quando morre no dia 13 de abril. Ali, naquelas páginas hoje ainda mais amarelas, ele já blasfemava.

O Brasil? Responde: um país de demônios. Deus? Um inimigo do homem. Os ricos? Afia a alma na pedra de amolar: São todos iguais. E atira, como um guerreiro enlouquecido de amargura, depois de confessar que a sua briga é com Deus: Viver é uma humilhação.

Vicente Serejo é jornalista e cronista

Texto originalmente publicado no Jornal de Hoje.

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Categoria(s): Crônica

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