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domingo - 07/12/2014 - 04:17h

Crime e expiação em Areia Branca

Por Nelson Patriota

Num famoso conto de Borges, Caim e Abel se encontram na outra vida e se olham, interrogativos, até que um deles pergunta: “Fui eu quem o matei ou tu que me mataste?”. E conclui Borges, um crime só prescreve com o esquecimento. Na vida, porém, são raros os que esquecem os crimes que cometeram ou as injustiças que sofreram; é comum, mesmo, que tal mácula persiga os humanos ao longe de toda uma vida.  O professor João Faustino Ferreira Neto, vítima de um acúmulo de injustiças que não conseguia esquecer, escreveu, na idade madura, um livro em que exorcizou seus algozes, intitulando-o de “Eu Perdoo”.

Autor de um crime involuntário e inteiramente improvável na quadra da sua juventude, o escritor areia-branquense Francisco Rodrigues da Costa precisou atingir a maturidade dos setentanos para pedir, de forma conclusiva, perdão e misericórdia pelo seu erro. O relato dessa história, seus antecedentes e suas decorrências estão contidos no relato autobiográfico “Perdão” (Sarau das Letras, 2014).

Mas ao contrário do que se poderia supor, “Perdão” não é um livro triste, isto é, marcado por ideias pessimistas ou niilistas. Seu viés se volta mais para a descrição do trabalho de reparação de um erro de juventude e de retomada da vida. Dada, porém, a dimensão da falta, só na idade madura, com a distância que uma longa idade oferece, pôde o autor encontrar as palavras, o tom e o roteiro de sua expiação.

Em seu minucioso e indispensável prefácio, intitulado “Uma vida que dá romance”, o escritor Aécio Cândido observa que Francisco Rodrigues começou a escrever seu livro depois dos 70 anos. “Hoje, com 81 anos, já publicou quatro livros, sendo este o quinto”, assinala e, sem conter seu espanto ante a fecundidade literária desse escritor tardio e fecundo, conclui: “Um desempenho invejável para qualquer um”.

A leitura de “Perdão” ajuda a entender por que Francisco Rodrigues estava fadado à escrita literária. Basta observar como ele manipula a arte do diálogo, de um lado e, do outro, se prende a minúcias na descrição de pessoas e situações, o que garante colorido e vivacidade ao que escreve. Os episódios em torno do soldado Catota ou do delegado Revoredo, personalidades opostas ligadas ao período prisional do autor, são uma boa mostra de suas habilidades de narrador. Tipos interessantes, curiosos e intrigantes desse mesmo jaez despontam a cada momento nas páginas do livro.

Um terceiro exemplo: a descrição do “affaire” que o então prisioneiro Francisco Rodrigues tem com a prostituta Margarida, cujos desenvolvimentos surpreendem pelas revelações que faz desse envolvimento singular, porque baseado na troca de favores sexuais, onde não faltam requintes e minudências eróticas, mas onde também avultam qualidades humanas improváveis em relações dessa natureza.

Sendo relato biográfico (ou semibiográfico, como quer Aécio Cândido), “Perdão” é, por força, um rico documento sociológico que faz revelações interessantes sobre as relações de trabalho na indústria salineira e pesqueira do município de Areia Branca e circunvizinhanças, sem descuidar dos jogos de poder, contraparte incontornável da vida provinciana, e do lazer e entretenimento que a animam.

O livro se encerra com uma revisita ao ano de 1954, ano fatídico na vida do autor, cujo agosto cumpriu com sobras os prognósticos populares que o reservam como celeiro de desgostos. Foi assim na vida de Francisco Rodrigues que teve, em João Faustino, um apoio fiel ao seu projeto de autoexposição. Quanto tempo um homem precisa para promover o perdão ou, expiando a culpa, ser perdoado?

As experiências vividas por João Faustino e Francisco Rodrigues indicam que um e outro desiderato exigem um esforço que, em verdade, se amolda ao sincero desejo de cada protagonista e só dele parece depender.

Nelson Patriota é escritor

* Texto originalmente publicado no jornal “Tribuna do Norte”

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Inácio Augusto de Almeida diz:

    Considero o perdão, de todos os ensinamentos de Cristo, o mais difícil de se cumprir.
    Observe que até o autoperdão não é fácil. Isto normalmente só acontece após anos de sofrimento.
    Porém é bom não confundir perdão com vilania, prática muito comum entre os hipócritas. Na realidade não perdoam, apenas priorizam interesses.
    Outro tipo de perdão que considero imoral é absolver os responsáveis pelos crimes cometidos contra a coletividade,
    Será perdão relevar os crimes que os nazistas cometeram nos campos de concentração?
    Será perdão remitir as desumanidades praticadas pelos comunistas quando da invasão de Berlim?
    Como perdoar o genocídio de 6 milhões de judeus em câmaras de gás? Como relevar o estrupo de mais de 500 mil mulheres alemães num só dia, barbaridade que levou mais de 100 mil alemães ao suicídio?
    Concluo perguntado se será perdão ou vilânia desculpar corruptos que tiram da boca de crianças famintas o alimento quando furtam o dinheiro da MERENDA ESCOLAR, quase sempre a única refeição destes pequeninos, corruptos que ainda não satisfeitos furtam o dinheiro do UNIFORME ESCOLAR e do MATERIAL ESCOLAR.
    Como perdoar corruptos que fazem empréstimos e pagam com dinheiro público dívidas que são suas?
    Dívidas que foram feitas, não por necessidade, porém no intuito de furtarem dinheiro público através deste expediente mais do que conhecido de todos, mas que continua sendo usado pelos que trocaram o coração por um cofre.
    Ou corrupto tem coração?
    Perdoar corrupto é COVARDIA!
    ////
    QUANDO SERÃO JULGADOS OS RECURSOS SAL GROSSO?
    QUANDO O MP VAI PASSAR UM PENTE FINO NOS TED REALIZADOS EM MOSSORÓ NA BOCA DO CAIXA?
    UM TAC PARA ACABAR COM A LEI DA MORDOMIA DOS VEREADORES.
    O MATERIAL ESCOLAR NÃO FOI ENTREGUE EM MOSSORÓ.

  2. naide maria rosado de souza diz:

    Texto espetacular. Minha imaginação vem me dizer que ele é tão bom quanto o livro.

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