Por Marcus Tullius
Em relação aos atos e às manifestações antidemocráticas praticadas no último dia 08 de janeiro de 2023, na sede dos três poderes da República, não paira dúvida sobre a gravidade dos fatos e as largas repercussões nacionais e internacionais. O ponto de vista aqui proposto está dissociado de aspectos relacionados às responsabilidades jurídicas e não expressa juízo de valor quanto às pessoas envolvidas, ou seja, como elas devem ser conceituadas ou tachadas juridicamente. Isso porque quem poderá fazê-lo é a atividade jurisdicional, realizada conforme os ditames do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e através de um Tribunal imparcial, com a salvaguarda dos valores constitucionais do Estado Democrático de Direito.
A partir dessas ponderações, observa-se o episódio antidemocrático recorrendo à metalinguagem da teoria dos conflitos sociais. No artigo científico publicado pelo sociólogo francês Alain Touraine[1] cujo título denomina-se “os novos conflitos sociais: para evitar mal-entendidos”, o autor ilustra as principais características que definem a natureza dos conflitos sociais e como isso repercute no surgimento de novas sociedades.
Com suporte e inspiração nesse referencial teórico, o elemento central de toda e qualquer reivindicação social é combater algum adversário real. Ao observar o núcleo dos protestos marcado pelas atitudes tomadas de invasão e de destruição da praça dos três poderes, os “manifestantes” revelaram que seus adversários reais são os Poderes da República representados pelo Legislativo, Executivo e Judiciário.
Nesse contexto, a teoria dos conflitos esclarece que o principal propósito de uma reivindicação social pauta-se na busca de uma comunidade reunificada. Pois bem, os “manifestantes” justificam o suposto objetivo de reunificação comunitária num espaço sem a presença de poderes constituídos, ou seja, de modo expresso estão difundindo a anarquia e o caos do Estado. Isto é, a pauta anárquica dos “manifestantes” pós-eleições democráticas reforça a tese de que não há projeto de fortalecer uma sociedade calcada na mediação realizada por pessoas instruídas (ex. políticos, parlamentares, juízes, cientistas, sociedade civil organizada) e de unir as categorias excluídas do sistema político a este (ex. aumentar a representatividade das classes sociais nas instâncias políticas escolhendo, por meio do processo eleitoral, seus vereadores, prefeitos, deputados, senadores, presidente).
Longe disso, o que se constatou na desordem promovida pelos “manifestantes” foi uma primeira tentativa concreta de golpe de Estado por meio da destruição do sistema político e do regime democrático. No fundo, esses “manifestantes” lutam pelo enfraquecimento do sistema político atual, mas não são capazes de construir argumentos críticos indicando a legitimidade de suas reivindicações “sociais” ou “políticas”. Enfim, querem um partido político apenas? Desejam um congresso sem debate crítico sobre proposições legislativas? Almejam um judiciário sem o ativismo judicial para proteção dos interesses dos excluídos socialmente?
PELA TEORIA DOS CONFLITOS, essa mobilização social é antidemocrática, de uma minoria da direita extremista e não se constitui num movimento de base social, já que inexiste a característica da espontaneidade da sua formação. Na realidade, esses “manifestantes” foram capturados e financiados por outras estruturas socioeconômicas fortes e silenciosas, que querem tomar o poder na base da força e da luta de seus “soldados fanáticos”.
Nos últimos quatro anos, essas forças ocultas do hiperdesenvolvimento sem o Estado e que são “padrinhos dos manifestantes”, trouxeram para dentro das instituições políticas e jurídicas os conflitos ideológicos (ex. o Estado escoltando e garantindo a segurança de pessoas que deliberadamente iriam destruir as próprias estruturas de poder do Estado – o fim do contrato social pela autofagia do Estado). Todo “suicídio estatal” em curso, provocado pelos conflitos ideológicos e tentado pelos “manifestantes” inclina-se a ser encoberto, quando os inimigos do Estado (ex. “manifestantes” e forças ocultas) se autodenominam de marginalizados e perseguidos por um novo governo ou que foram enganados por fraude nas eleições.
Em outras palavras, sem qualquer fundamento plausível, buscam forjar uma base ou motivo legítimo para suas reivindicações, visivelmente teratológicas nos fins e ilegais pelos meios.
Outro ponto a aprofundar com espeque na teoria dos conflitos, reflete no enquadramento dos “manifestantes” como “opositores” ou “desviados”. Os “opositores” questionam a nova ordem, formam movimentos de base, criam argumentos, constituem partidos políticos, dialogam com as instituições democráticas, participam pela convicção das ideias e no processo eleitoral legítimo assumem o poder (ex. a corrente centro-direita ou a direita moderada).
Os “desviados” questionam a normalidade, por isso são afeitos a dialética da violência e não aceitam a política porque possuem paixões autoritárias. Assim, vê-se que os “manifestantes” são verdadeiros “desviados”, mas que podem se reconfigurar ou redesenhar como “opositores”, desde que aceitem o jogo democrático (obs. será que existe terapia para o autoritarismo?).
Na democracia a conjuntura dos conflitos sociais não pode ser mal-entendida ou subestimada, pois exige e desafia as estruturas de poder democráticas, como o Legislativo, o Executivo e o Judiciário ao bom combate. Isso significa que a vitalidade do Estado Democrático de Direito se fortalece na atuação impessoal e integrativa dos interesses conflitantes. Porquanto, tais movimentos antidemocráticos não são ideologicamente coerentes, na medida em que mistura a classe trabalhadora, os servidores públicos, os professores, os empresários etc.
Essa nova reconfiguração lança um novo desafio para o Estado em termos de pacificação social. Logo, é preciso que o Estado atue no sentido de consertar esse tecido social esgarçado, confuso e perigoso para a democracia.
À vista disso, pela ausência de unidade e de coerência das manifestações antidemocráticas, falta a esses “movimentos sociais” a atitude crítica essencial para conviver numa democracia. E, por meio da incoerência dos seus comportamentos desviantes, embora queiram espalhar o contrário, revés de fortalecer, destroem a ordem pregada pelo novo capitalismo do século XXI, que só encontra espaço para se desenvolver na democracia.
Por último, povo brasileiro, trabalhador, ordeiro, inteligente, pacificador, cordial, irmão, não se furte ao debate político de ideias, a crítica de políticas de governo e a busca pela ocupação dos espaços decisórios pelo caminho da democracia, eis o trajeto que melhor administra a mudança para uma nova sociedade. Uma sociedade plural e democrática, revelará que o adversário social real a ser combatido é a exclusão social. Sem dúvida, que fique bem-entendido, a reunificação a ser realizada deve ser em torno de ideais comuns.
Marcus Tullius é doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, advogado e professor universitário dos cursos de Direito da Uern e da Ufersa
[1] Disponível em: //www.scielo.br/j/ln/a/tTnhY6qvJhHxBQLxpZzLS8f/?lang=pt
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