Por Honório de Medeiros
Sérgio Dantas é, desde algum tempo, o principal pesquisador e escritor acerca do cangaceirismo no Rio Grande do Norte, graças à seriedade e talento com o qual trata do assunto.
Autor cuidadoso, seus livros se tornaram referências em razão do zelo que é sua marca registrada, e, aos poucos, sua obra, ou seja, o conjunto dos seus estudos publicados ao longo do tempo, o creditam, pela relevância, como um nome de expressão nacional.
Não há um livro “menor” dentre os que escreveu, seja Lampião no Rio Grande do Norte; ou Lampião na Paraíba – Notas para a História; passando por Lampião, o Processo de Martins; Antônio Silvino, o Cangaceiro, o Homem, o Mito; Lampião entre a Espada e a Lei; até Corisco, A Sombra de Lampião. Todos merecem ser presença certa na biblioteca de qualquer estudioso do cangaceirismo.
Lampião no Rio Grande do Norte, cujo subtítulo é “A história da grande jornada”, livro de estreia de Sérgio Augusto de Souza Dantas, é uma obra seminal, cujo tema central, o ataque a Mossoró em junho de 1927 liderado por Lampião, é analisado minuciosamente a partir de informações colhidas durante quatro anos de pesquisa, perambulações, visitas, entrevistas, cruzamento de informações, consulta à literatura hoje vastíssima acerca do cangaceirismo. Para coroar, um valioso acervo fotográfico é colocado à disposição do leitor.
Em relação a Massilon, cangaceiro cuja importância no ataque é muito relevante, Sérgio Dantas agregou informações valiosíssimas, dentre elas o “raid” que esse personagem singular empreendeu nos costados do Jaguaribe e Cariri logo após o episódio de Mossoró.
Isso significa dizer que a lenda segundo a qual Massilon, antes da célebre foto de Limoeiro, Ceará, já se separara de Lampião e teria ido embora para o Norte, não é verdadeira.
Detalhada, a história da “jornada” espanta pela riqueza de detalhes. Não por outra razão ficamos sabendo de cada passo do grupo cangaceiro por todo o território do Rio Grande do Norte, cidade por cidade, povoado por povoado, sítio por sítio, fazenda por fazenda.
Os acontecimentos nas cercanias de Martins e Umarizal, antiga “Gavião”, são relatados com precisão. E tudo quanto aconteceu em Apodi, antes da chegada de Lampião, protagonizado por Massilon, recebe tratamento de pesquisador sério e interessado.
A descrição geográfica e sociológica dos lugares pelos quais passou o bando de cangaceiros merece respeito. Através dela é possível perceber o dia-a-dia daquelas comunidades existentes no início do século XX. Os relatos dos mal tratos, arruaças, bebedeiras, torturas físicas e psicológicas nos comove e revela a sensibilidade do Autor.
Quanto a Antônio Silvino, o Cangaceiro, o Homem, o Mito, somos apresentados a um cangaceiro cru, recortado do contexto mítico inserido em sua dimensão humana, sem que restasse perdido tudo quanto o tornou um dos mais interessantes personagens da trindade básica que forjou a alma sertaneja – o cangaço, o misticismo, o coronelismo.
Louve-se a felicidade na escolha do “nome” de cada capítulo bem como o excerto que o acompanha, próprio para chamar a atenção do comprador desatento, em uma homenagem ao estilo jornalístico de outrora, e a indicar um texto enxuto, leve, de parágrafos curtos e bem encadeados.
Chamam a atenção episódios, trazidos a lume, que por si somente têm dimensão histórica, como a convivência entre Antônio Silvino e Gregório Bezerra, lendário líder comunista pernambucano, sua entrevista com Graciliano Ramos, e o assalto à Usina Santa Filonila na qual morreu Feliciana na flor da idade – crime do qual o cangaceiro jamais deixou de se arrepender.
O Antônio Silvino que emerge do ótimo texto de Sérgio Dantas é um personagem emblemático: é o retrato nítido de uma saga que nos permite identificar e compreender os nexos causais que originam certa circunstância histórica – o período do cangaceirismo – e até mesmo ir além, na medida em que também permite identificar o viés comum a entrelaçá-los, ou seja, a questão do Poder Político.
Basta colocar esses retratos sobre a mesa e examiná-los com olhar crítico: Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião; Coronel Zé Pereira, Coronel Isaías Arruda, Coronel Floro Bartolomeu; Pe. Cícero, Beato Zé Lourenço, Antônio Conselheiro, tomando distância de qualquer tentativa de tentar a lógica do fenômeno a partir de uma explicação oriunda exclusivamente a fatos alusivos à posse da terra ou luta de classe.
Afinal, a ideia antecede a ação. E a ação, antes de tudo, é sempre algo individual.
É difícil conjecturar se Sérgio Dantas vai se aventurar em novos resgates históricos ou cuidará de desbravar outras fronteiras. Sua obra tem estado, até agora, entre um ciclo e outro: a mera narrativa e a pura interpretação, no que diz respeito à literatura acerca do cangaceirismo.
Talento, não lhe falta.
A mera narrativa provavelmente está perto do fim: já não é mais possível, até onde sabemos, ressalvada a possibilidade de documentos desconhecidos surgirem inesperadamente, prosseguir com a literatura elaborada a partir de relatos, fotos, testemunhos ou escritos, ou seja, fontes primárias.
Dos sobreviventes daquelas “eras” já se extraiu mais do que tudo. Os papéis estão virando pó, vítimas da ação inclemente do tempo e da incúria das nossas elites.
Um outro ciclo está surgindo: a interpretação de todos esses dados, ou seja, uma literatura de tese, iniciado por Frederico Pernambucano de Mello com Guerreiros do Sol, onde se aliou pesquisa de ponta e interpretação dos fatos.
Esperemos, então. E que sua obra, importante como é, além dos merecidos elogios semeie críticas e informações outras, alguma correção de rumo – se for o caso – retornando ainda mais rica para o acervo dos historiadores e sociólogos do Brasil.
É assim que ocorre quando uma obra deixa de pertencer ao Autor, por sua importância, e passa a fazer parte do referencial bibliográfico ao qual pertence.
ESCRITORES
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Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN
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