(em homenagem ao meu educador musical, meu pai, Ary Araújo)
Por Marcos Araújo
Um dia depois de fazer 28 anos, em 1972, após voltar de uma festa, o escritor e compositor Torquato Neto trancou-se no banheiro e abriu o gás. Antes do suicídio, deixou uma carta em que dizia não conseguir acompanhar a marcha do progresso, e que seria melhor morrer porque tinha muita saudade do Rio de Janeiro do passado. Caetano Veloso, amigo de longas datas, compungido por essa perda, compôs em sua homenagem a música “Cajuina”.
Tirante o suicídio, faço minhas as palavras do poeta Torquato Neto: não consigo acompanhar a marcha do progresso e tenho sentido uma nostálgica saudade do passado. Especialmente, quando se trata de música…
Fui educado musicalmente pelo meu pai, que me apresentou, logo nos primeiros balanços de ninar, a Francisco Alves, Lupicínio Rodrigues, Adelino Moreira, Moacyr Franco, Antônio Maria, Nelson Gonçalves, Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho, Herivelto Martins, dentre outros. As canções de sua preferência traduziam um conteúdo autêntico da alma humana: amor, alegria, ódio, traição, esperança, vingança…
De Lupicínio Rodrigues, numa composição feita para relatar uma infidelidade, meu pai interpretava com voz grave o desejo de “Vingança”: “mas, enquanto houver força no meu peito, eu não quero mais nada, e pra todos os santos vingança, vingança, clamar (…)”. Noutra interpretação pungente, de olhos rútilos para o infinito, evocava a descrição de uma linda musa, inalcançável à minha vista de criança, que tinha “seus cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar, seus lábios de rosa para mim sorrindo, e a doce meiguice desse seu olhar.” (Índia, de Manuel Ortiz, interpretada por Cascatinhas e Inhana).
Através da musicalidade interpretativa do meu pai também fui iniciado no sentimento do amor adolescente, que perde sua primeira namorada na “estrada longa da vida”, e por ela vai chorando a sua dor, “igual a uma borboleta, vagando triste por sobre a flor, seu nome sempre em meus lábios, irei chamando por onde for.” (Meu primeiro amor, canção de Herminio Gimenez, com versão brasileira de José Fortuna).
Pós-adolescente, fui influenciado por Chico Buarque e suas crônicas sociais musicadas (Meu guri, Geni e o Zepelim, Gente humilde), e, fundamentalmente, o seu protesto político (Cálice e Apesar de você).
Inoculei-me do vírus da resistência à ditadura militar e à censura contra as diversas formas de expressões artísticas, entoando civicamente “Pra não dizer que não falei das flores”, composta pelo paraibano Geraldo Vandré, alinhando-se entre os que não foram às armas, mas se puseram no front fictício à disposição do país, por saber que, “Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer”.
Sem querer ficar apenas no “apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar”, fui investido da contestação e da rebeldia de Raul Seixas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, dentre muitos outros. Até a sutileza e o pseudo romantismo de uma balada como “Doce, Doce Amor”, letra de Raul Seixas para Jerry Adriani, era um protesto, uma metáfora para o AI-5. O “doce amor” perdido na canção é uma referência às liberdades individuais e à democracia. (Está fazendo uma semana que, sem mais e nem menos, eu perdi você. / Mas não sei determinar ao certo qual foi a razão, meu bem. Vem me dizer)
Mais tarde veio a revolta de Renato Russo, Cazuza, Flávio Leandro com “Chuva de honestidade”, e o esbravejo contra a dominação sulista em “cidadão” e “triste partida”.
Agora, na maturidade, chego ao fim dos meus dias tendo que ouvir nas emissoras de rádios e entre os meus circunstantes que veraneiam, o som altíssimo de “Rita”, “Letícia” e “Jenifer”. Rita, “aquela desgramada”, a quem se perdoou “a facada”, sua irmã Letícia, que foi “embora com um mototaxista”, juntaram-se a Jenifer, aquela que foi encontrada no Tinder, e formaram o trio de mulheres mais conhecidas do país no momento. Ainda tem o “amor de rapariga” e a traição por apenas “cinquenta reais”.
Como se sabe, a música é apenas uma forma de manifestação cultural, sendo ela o retrato do comportamento, da cultura, da estética, gostos, tendências e das mudanças sociais do momento.
Se Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius, foi a canção que inaugurou um movimento na cultura e na música no mundo conhecido por Bossa Nova, fico a imaginar como será conhecido no futuro o movimento iniciado pelo trio RLJ (Rita, Letícia e Jenifer)? Será a Bosta Nova? (com desculpas pelo palavrão).
Fito às vezes os meus filhos pequenos, que crescerão entre as canções de MC Kevinho, MC Catraca, Anitta, Ludmilla, Gustavo Lima e outros tantos, e ponho-me discretamente a cantarolar a música título desse texto (Esses moços, pobres moços, de Lupicinio Rodrigues): “Se eles julgam, que há um lindo futuro / Só o amor nesta vida conduz, Saibam que deixam o céu por ser escuro
E vão ao inferno à procura de luz…”
P.S. Escrevo esse texto ouvindo ao longe um grupo de jovens cantando “Rita”, enquanto eu procuro dentro da casa alguma cicuta ou veneno de rato para tomar.
Marcos Araújo é professor e advogado
Grande texto… Marcos Araújo eh gigante… Abraços
Amei! Quero mais! 👏👏
Marcos bela reflexão. Eu particularmente quando ouço algumas músicas, elas me lembram de um momento, lugar ou pessoas. Ao escutar Alceu lembro das viagens a Tibau com minha tia, Roberto Carlos de minha mãe, já falecida, enfim algumas me fazem sentir uma Gama de sentimentos. Agora como serão as lembranças dessas pessoas em futuro áo escutar Letícia, Jennifer ou outra qualquer ? Acho eu, que não haverá lembrança porque hj é tudo muito vazio. Abraço
Sempre inspirado! Sou fã incondicional!
Parabéns meu amigo. Nesse texto Você foi fiel a uma realidade até então indisponível para nossa geração.
Que pena que num futuro próximo, nos faltará bons ncompositores.
Que bela crônica, amigo Marcos. Taí uma coisa que não sabia do velho pai Ari, surpreso fiquei com o elenco de cantores e compositores por ele admirados, meu gosto de música se confunde com o do seu velho amigo e pai, só completaria a galeria com Adelino Moreira, responsável pelo vasto repertório da sapoti Angela Maria. Hoje amigo, vc me remeteu ao passado poético da música brasileira, na atualidade só temos borras.
Ixi, pisei na bola! Você mencionou Adelino Moreira. A idade me traiu…kkkk
– Homi, certa vez eu vinha de Natal à bordo de um ‘confortável e luxuoso’ semi-leito da Viação Nordeste, bem lotadão, quando um moço aparentando ter 18 anos sapecou um cel do tamanho de uma rapadura preta, prantô o dedo no play e começou a ouvir diga quem?
– Quem????
– Ele! Belo.
– Aff!!!!
– Pois bem. Chegamos em Lages e eu torcendo para a batetia do cel dizer tchau.
Mas que nada, meu. O jovem já desceu com o carregador pendurado no pescoço e já foi procurando uma tomada.
Quinze minutos mais tarde, e lá vem a peça de novo. Desta vez mascando um chiclete. Advinha que ele botou pra cantar?
– Quem???
– Um tal de Ferrugem, que eu nunca tinha ouvido falar no jogo do bicho.
Meu amigo…..pense num repertório Bosta Nova. E tem mais: bateria cheia, a marmota arregaçou o volume sem pena.
Aí eu disse pra mim mesmo: ‘Vô pulá’.
E vou pular quando esse ônibus estiver passando em cima da ponte do rio Acú. Pensei: se eu não morrer da queda, morro afogado.
Mas deu zebra. Quando o bus entrou na ponte eu me levantei e disse: ‘É agora ou nunca .’ Apois num é que deu ‘nunca?’
– Por quê, vô?
– As drogas das janelas dos bus não abrem mais.
Num é de lascar, não???
– Vô, na próxima viagem o senhor deve levar veneno de rato e uma garrafa com água.
Mais simples impossível. Né não?
– Ô, menino bom. Nã! Isso é um santo. Puxou ao avô.
Marquinhos parabéns, nunca gostei da bosta nova, meu ouvido não é pinico!
Belo texto! Prof. Marcos sempre brilhante.
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