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domingo - 23/03/2014 - 08:32h

Estamos ficando cada dia mais limitados

Por Honório de Medeiros

A ciência começa a comprovar algo que o senso comum já constatara: estamos ficando cada dia mais limitados na nossa capacidade de nos concentrar, principalmente em tarefas de natureza abstrata como ler um livro. Em “A Civilização do Espetáculo” Mário Vargas Llosa especula, a esse respeito, por vias transversas, enquanto descreve a banalização da cultura contemporânea na medida da opção pelo entretenimento ligeiro, de conteúdo pobre e forma atraente, em detrimento da complexidade de nossa anterior herança cultural comum.

Não aponta causa específica para o fenômeno, mas alude, obliquamente, à onipresença imperiosa, por trás dos panos, da incessante necessidade do lucro. Em outra face da questão o filósofo americano Michael J. Sandel, autor de “Justiça” menciona, em “O que o Dinheiro não Compra”, como a corroborar Llosa, o poder avassalador do mercado a dominar tudo e todos, corações e mentes, e suas consequências no universo moral.

Quem diz mercado, diz lucro.

Daniel Coleman, o famoso psicólogo americano professor em Harvard, criador do conceito de “Inteligência Emocional”, pondera acerca de outra face desse poliedro social, ao apontar o déficit de atenção cada vez mais profundo, decorrente da escravidão às redes sociais , em nossa civilização, a originar uma demanda, no futuro, pelo próprio mercado, de todos quanto sejam capazes de se concentrar em tarefas de médio e longo prazo.

Perguntamo-nos se quando o mercado reagir a catatonia (alienação) já não estará estabelecida de vez.

Acerca do fenômeno da volatilidade das coisas, causa e consequência desta atual fase do capitalismo, discorre Baumant com excepcional clareza em sua obra de caráter mais filosófico que sociológico. Somos uma sociedade evanescente, crê ele, na qual a transitoriedade de tudo, cada vez mais acentuada e veloz, seria o único fator permanente. Ou seja, mercado, lucro, redes sociais potencializadoras, volatilidade, déficit de atenção, tudo interconectado.

Em outra face – são mesmo muitas, para a mesma realidade – Moisés Naím especula acerca da fragmentação do poder, tal qual o conhecemos, como consequência dessa realidade volátil, evanescente, permanentemente transitória, em decorrência, entre outras coisas, dos instrumentos que a alimentam e ampliam, ou seja, a rede social e a interconectividade, por exemplo.

O que estaria por trás de tudo isso?

Como chegamos a esse patamar?

Que teoria explicaria esse fenômeno em sua inteireza?

A menção, feita por Llosa, Sandel, Michel Henry e Debord, estes aqui ainda não citados, mas que também especulam acerca de faces do mesmo poliedro, qual seja o dinheiro, o lucro, o mercado, poderia, obliquamente, dar razão ao Marx sociólogo, não aquele do materialismo dialético. Ou à teoria da seleção natural, do qual o capitalismo seria um epifenômeno.

Nesses casos bem vale o dito atribuído a Proust: “o tempo é senhor da razão.”

Ressalve-se, apenas, que as tentativas para conter a alienação, quando e se acontecerem, promovidas seja pelo próprio mercado, seja pelo Estado, poderão encontrar um status quo irreversível. Isso acontecendo, tendo como causa um brutal nivelamento por baixo em termos de capacidade de apreensão, cognição, pensar em termos complexos, perdemos todos.

Concretamente viveremos a realidade da Academia no Brasil, hoje: cada dia mais alunos, cada dia menos conhecimento…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. jb diz:

    Éh! parece que à Universidade é Para Todos, mas quase todos não são para Universidade,segundo mais uma pesquisa sobre analfabetismo funcional Academia está cheia-ou quase- de universotários e os resultados estão aí! //www.administradores.com.br/noticias/academico/mais-da-metade-dos-estudantes-universitarios-sao-analfabetos-funcionais/85670/

  2. naide maria rosado de souza diz:

    Texto, como sempre, de extrema inteligência, Prof. Honório.
    A minha semana advocatícia deixou-me frustrada, embora tenha alcançado sucesso em todos os “Processos” que me foram confiados. É que, simplesmente, não precisei ir ao Forum , nem redigi nenhuma petição. Ora, seria o caso de se dizer parabéns, que façanha! Nada disso. Advoguei da forma “catatônica” que espero não estar “estabelecida de vez”. De fato, a modernidade das comunicações não pode me tornar uma máquina que prescinde de conhecimentos jurídicos, somente apta a saber teclar 1, se eu for pessoa física, 2, se pessoa jurídica e assim por diante.
    Necessitei entrar em contato com uma Empresa de Telefonia para obter subsídios que informassem a peça Inicial de um dos processos. Eis que, teclando 1, 2, depois de novo, 1, 2, ouvindo aquelas músicas insuportáveis, mas sem poder desligar, indo para novo setor de novas teclas 1, 2, 3, 4, até 9…chego no último setor de 1 a 9…e, dessa vez, no 9, recebi o n° do telefone específico para a solução do problema. Ali, encontraram o erro que cometeram contra o meu constituinte, ali reconheceram o erro, assumiram as responsabilidades e enviaram a gravação do ‘mea culpa”. 5 anos numa Faculdade de Direito e dois em pós-graduação. Muito bem. Advogo teclando números e ouvindo músicas enlouquecedoras. Deu certo? deu. Progresso da comunicação ou “banalização da cultura contemporânea”? Cliente satisfeito? Sim, muito. Só pretendia isso. O quê mais hei de querer?
    Outro processo : contra um grande Plano de Saúde. Paciente há vários dias na UTI de um dos maiores hospitais cardiológicos do RJ, aguardando liberação de “stents” para cirurgia. Informa o hospital que o Plano diz ter liberado os “stents”, mas que o Fornecedor nega a liberação. Pois bem, eis-me, de novo, ao telefone. Preciso entrar em contato com o Plano para informar a minha LIMINAR. Faço a ligação: teclo 1, teclo 2…ouço a música que já me soa sinistra…caio noutro setor…teclo 1, teclo 2…e vou teclando…até surgir a voz humana, desumana, que afirma que o meu cliente não está hospitalizado. Que recebeu alta no dia 18, de um outro hospital. Não prestou. Ligo para o outro hospital…teclo 1, teclo 2…recebo a informação que o paciente fora transferido para a unidade atual no dia 18, o que eu já sabia. Ligo para a unidade nova, teclo 1, teclo 2…peço a senha da internação do paciente e nome dos funcionários do Plano que afirmaram ser o envio dos referidos “stents” uma prioridade. Ligo novamente para o Plano, agora, cheia de senhas de internações e transferências. Recebo , novamente, a informação de que o paciente obteve alta no dia 18. Aviso que enviaria um médico para tirar foto do paciente com um celular etc…( Isso poderia ser importante para a minha Liminar, mas precisei avisar porquê havia uma vida humana em risco, e não me importo com a fogueira das vaidades). Faço nova ligação para o Hospital anterior, fico sabendo que o Plano registrara, erradamente, a chegada do doente no novo hospital com o número da unidade anterior. Informação sigilosa. Eis porquê ele não existia. O erro foi descoberto por conta de minhas ligações. Era uma causa vencedora. Tudo isso aconteceu entre 15.30h e 17.30h do dia 21, sexta-feira, quando fiz a minha última ligação ao Plano de Saúde. Comuniquei tudo à família do doente e comecei a preparar a LIMINAR para levar ao Plantão Judiciário. Às 17.45h. recebo uma ligação da família, dizendo que o paciente iria ser operado às 21h….que os “stents” haviam chegado. Não tinham palavras para agradecer o meu empenho e que eu era uma excelente advogada, etc e tal… Paciente operado, está bem, recebendo alta hoje. Excelente advogada? Talvez detetive ou rastreadora ou telefonista, sem querer denegrir nenhuma dessas profissões. Família feliz, encerrando o problema por aqui. Claro que estou feliz pelo resultado das duas “causas”, principalmente dessa última, onde havia risco de vida. Mas onde advoguei? “Ali onde eu chorei qualquer um chorava…” não precisava ser um advogado. Bastava saber clicar.

  3. Honorio de Medeiros diz:

    Naide Maria, se me permite tratá-la assim, seu comentário é uma excelente crônica. Em quê estamos nos transformando! Penso que estamos no limite de uma transformação radical, uma ruptura. Pensamos formatados no ontem, mas vivemos no amanhã. É demasiado forte para quem foi contemporâneo do surgimento da televisão em sua própria cidade, a Mossoró do começo dos anos sessenta…

  4. naide maria rosado de souza diz:

    Prof. Honório.
    Muito lisonjeada com a suas palavras. Agradeço. A minha semana jurídica, de fato, foi estranhíssima. O sr., Professor, veio salvá-la com a lucidez de suas observações.
    Naide Maria.

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