Por Marcos Ferreira
Tarde chuvosa. Deliciosamente chuvosa. Ele chegara havia pouco, o rosto simpático e sempre bem barbeado por trás da máscara cirúrgica de três camadas, o pequeno borrifador de álcool-70 numa das mãos. Orçando pelos cinquenta anos de idade, contraiu o famigerado vírus há cerca de três meses, contudo não experimentou nenhum desconforto, totalmente assintomático.
Cumpriu quarentena e desde então segue respeitando os protocolos de segurança. É dos raros intelectuais desta paróquia de homens de letras que não riscaram este meu endereço periférico dos seus mapas afetivos. Isto muito antes da pandemia, devo ressaltar. Entre um assunto e outro, lógico, enveredamos pelo habitual e inesgotável universo da literatura.
— Aconselho que não escreva sobre Mossoró. Não falo assim por se tratar de um assunto menor ou desinteressante. Não é isso. A questão é que você, pelo que já demonstrou, tem a indelicada mania de falar mal da sua própria terra — alertou-me o amigo quando lhe participei a informação de que intenciono produzir um livro de crônicas acerca desta província: o País de Mossoró.
— Seriam apenas amenidades — argumentei.
— Até imagino — devolveu incrédulo.
Paulo Sabóia, eis o nome do referido amigo e leitor, está correto. Dou a mão à palmatória e admito que houve ocasiões em que desferi uma porção de conceitos pouco elogiosos contra esta cidade e seus habitantes. Nada à toa, nenhuma vírgula injusta ou imerecida, eu asseguro, meus caros conterrâneos. Talvez tenha me excedido apenas na posologia do remedinho amargo então ministrado.
— Mossoró é o que é. Ame-a ou deixe-a.
— Nem uma coisa nem outra — rebati.
Ao contrário de mim, Paulo Sabóia não é mossoroense nato, mas adotivo, oriundo da Paraíba. Além de bom sujeito, é jornalista, poeta e agitador cultural. Missão muito árdua esta última num caixa-pregos como este. Há uns quinze dias, com o peito cheio de gratidão, aventurou-se no verso rimado e metrificado e publicou um cordel, uma ode romântica e acidentada em honra a esta urbe que ambiciona tornar-se “capital brasileira da cultura”. Sim.
O Executivo almeja esse título por patrocinar toda sorte de furdunços enganosamente juninos na Estação Sem Artes Elizeu Ventania e exibições pirotécnicas e dispendiosas, também no mês de junho, no patamar da igreja de São Vicente, por ocasião do fanfarronesco espetáculo “Chuva de Bala no País de Mossoró”. Exceto isto, infelizmente, nada mais de arte ou cultura.
Existe em Mossoró a tacanha mentalidade de que não há outro tipo de arte ou cultura fora da temática do cangaceirismo e da nossa rica tradição no gênero literário do cordel. Para os nossos gestores, não possuímos vida inteligente além desse microcosmo popularesco. Ignoram olimpicamente o fato de que temos outras expressões de arte escrita, como as modalidades do conto, do romance e da crônica.
Nesta última categoria, a propósito, ficamos desfalcados com o passamento do mestre Dorian Jorge Freire (1934-2005), estilista de alto coturno. Mas ainda contamos, para não incorrer no erro de citar fulano e esquecer cicrano, com a valiosa pena de outro formidável cronista: José Nicodemos, que escreve heroica e diariamente no Jornal de Fato páginas da melhor qualidade no tocante ao âmbito da crônica literária.
Em face dessa velha e revelha miopia administrativa, portanto, o Palácio da Resistência não destina um centavo sequer para o fomento e engrandecimento das letras locais, atendo-se apenas à manutenção do infalível casalzinho cangaço e pirotecnia. E, quando o faz, é por meio de bagatelas, nonadas, coisa do tipo troféus, medalhas ou pedaços de cartolina com a pífia distinção de honra ao mérito. Isto me recorda um pensamento do executivo Jack Welch, ex-presidente da General Eletric, morto no ano passado: “Você não pode premiar as pessoas apenas com troféus. É necessário recompensá-las na alma e na carteira”. Concordo plenamente.
Prefeituras dos mais diversos recantos do Brasil, várias destas com receitas inferiores à de Mossoró, como as de Piracicaba (SP), Campos dos Goytacazes (RJ) e Santa Maria (RS) sustentam há décadas, ano pós ano, chova ou faça sol, concursos literários de alcance nacional a partir dos seus projetos de lei. Aqui, infelizmente, não temos nada disso. Muito menos, por exemplo, um “Prêmios Literários Dorian Jorge Freire” bancado por nosso Executivo e efetuado pela Secretaria Municipal de Cultura, atingindo assim as modalidades do romance, do conto, da poesia e da crônica. Isto, obviamente, com a oferta de valores monetários ao primeiro, segundo e terceiro colocados.
Reafirmo que tal deficiência não é de hoje, mas de sempre.
— Fale da pandemia — propôs Sabóia. — Até agora, diferentemente de todo mundo, você não emitiu um pio sequer no tocante a esta calamidade planetária. O ano de 2020 foi um suplício para todos nós e este 2021 vem se revelando ainda pior. Ontem, conforme a imprensa divulgou, quase atingimos a medonha marca dos cinco mil mortos no curtíssimo espaço de vinte e quatro horas.
— Há tanta gente opinando o tempo todo sobre isso. Eu seria apenas uma gotícula nesse incalculável oceano de lágrimas, um risco n’água. Portanto, poeta, me sinto impotente perante esse estado de coisas.
Após estalar a língua reprovando o meu argumento, coisa que ele chamou de atitude omissa, Paulo coçou o seu queixou de tubarão-martelo, consertou os óculos na venta achatada e agarrou a garrafa do café fresquinho que eu fizera e colocara no centro da mesa logo que ele chegou. Serviu-se de outra dose da preciosa rubiácea, lambeu os beiços e acrescentou com ar solene e profético:
— A história lhe cobrará por isso.
— Que se dane a história, amigo.
Agora foi minha vez de servir-me de uma segunda xícara do café. Paulo Sabóia indagara sobre o gênero do livro que planejo escrever e, repito, falei que seria um livrinho de crônicas do nosso cotidiano, posto que já tenho inéditos um volume de contos, dois romances e um quarto livro de poemas.
— É claro que boa parte dessas crônicas você tem publicada por aí, talvez até fora de Mossoró — destacou Paulo. — Acho que vale a pena realizar um pente-fino no computador e nos periódicos junto aos quais colaborou, e pinçar aqueles textos que julgue mais interessantes do ponto de vista literário para compor o seu projeto. Além de outras páginas que produza daqui por diante.
— Pois bem. Minha parca produção nesse gênero teve poucos destinos. Encontra-se, sobretudo, no caderno de cultura do jornal O Mossoroense e na Revista Papangu. Outra pequena fração tornei pública no blogue do Carlos Santos. Isto é, não transpôs os nossos limites geográficos. Não que eu saiba.
— Sei que essa coleta resultará em boa coisa — afiançou Paulo Sabóia degustando a rubiácea. Em seguida consultou o relógio e fez um comentário irrelevante sobre a chuva fraquinha e regular que se precipitava há um bom tempo. No minuto seguinte, sem que eu identificasse a chamada, o celular tocou e ele pôs-se de pé sem, devido à pandemia, estirar-me a mão para um aperto:
— Eu preciso ir. Tenho um compromisso.
— Tudo bem, amigo. Obrigado pela visita.
— Não se esqueça; pega leve com sua terra.
— Não se preocupe. Eu adoro Mossoró.
Marcos Ferreira é escritor
Marcos Ferreira nunca decepciona. Belezura de crônica. Ainda mais citando
os mestres Dorian Jorge Freire e meu querido José Nicodemos, uma das minhas
referências.
Abração, amigo!
Prezado Odemirton Filho,
Grato pela leitura e estímulo de sempre.
Grande abraço e um ótimo domingo.
Sigo Odemirton Filho: palmas para Marcos Ferreira!
E Vivas aos Mestres Dorian Jorge Freire e José Nicodemos (que, do alto de seus 83 anos de idade, sustenta Crônica diária…).
Abraços
David Leite
Amigo David Leite,
É sempre uma honra contar com a atenção de um leitor e literato da sua sensibilidade e perspicácia. Suas crônicas no blog do Carlos Santos e os contos que tem publicado na Revista Papangu são dignos de nota e nos colocam à espera de novas produções. Em relação ao grande cronista José Nicodemos, eu não disse nada que ele não mereça. É um patrimônio vivo da crônica norte-rio-grandense e um dois maiores do Brasil a esta altura, acrescento agora.
Forte abraço!
Os sentidos, os odores, os sabores, os amores, os desamores, a ação, a inacao, a irreverência, o sarcasmo, a boa conivência, a cumplicidade, a lealdade e a deslealdade aos fatos.
Acima, apenas alguns surrados verbos e palavras que consegui lembrar, que comporta e que aplaca a alma do sempre brilhante e maravilhosamente inquieto Marcos Ferreira quando se refere irreverentemente ao famoso ADORO MOSSORO..!!!
O que dizer Marcos, senão…através do que a flor do Lácio nos oportuniza, avalizando suas bem colocadas e acertadas palavras de que em Mossoró, infelizmente, o que impera em todas as áreas, sobremodo no mundo da cultura, tão somente e o imobilismo, daí a repetição da arte em forme de obtusidade e mediocridade tão latentes.
Que as rubiáceas de todos os sabores, cores e sentidos, continuem serem servidos, sorvidos, saboreados e degustados pelos convivas, anfitriao e anfitrionados no átrio de uma sonhada e desejada bela epoque cultural na Mossoró/Paris do século XXI…!
Um baraco
FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO.
OAB/RN. 7318
Prezado Fransueldo Vieira de Araújo,
Bom dia…
Suas regulares observações, seus comentários pertinentes e, em suma, a sua instigante mensagem acerca do meu exercício literário neste blog do Carlos Santos, entre outros, dão-me novo fôlego e realça o meu compromisso de apresentar aos leitores deste espaço nada menos que algo que lhes valha o tempo destinado à leitura de minhas páginas. Fico contentíssimo e recompensado, portanto, em tê-lo como leitor.
Forte abraço!
Marcos Ferrreira.
Merecíamos esse gozo rsrs. Tá dito, Marcos. 👏👏👏
Bom dia, Marcos!
Belíssima crônica! Parabéns!
Abraços