Por Marcelo Alves
Como o direito de um país evolui ou se desenvolve?
Não estou falando dos fatores sociais, políticos, ideológicos, econômicos etc., fontes materiais do direito, que, sem dúvida, condicionam a evolução do sistema jurídico/legal de qualquer país. Indago sobre a forma como esses sistemas jurídicos são alterados/aperfeiçoados. Correndo o risco de ser redundante ou de enfatizar o óbvio, anoto: os sistemas jurídicos/legais são normalmente aperfeiçoados por mudanças na sua legislação (em sentido lato). Desde a respectiva Constituição (seu mais relevante documento legal), passando pela lei em sentido estrito e indo até os atos normativos ditos secundários, como os decretos, resoluções, portarias etc.
Num mundo ideal, que não existe, teríamos a legislação sempre evoluindo na medida em que “evoluíssem” (às vezes para pior, admito) as condições/realidade de dado país. Mas a coisa não se dá sempre assim. Não vivemos num mundo ideal. O legislador tem suas limitações. As políticas, por óbvio. E as naturais: ele não consegue mesmo acompanhar as mudanças na Terra Redonda (o mundo, como se diz por aí, não gira, capota); nem também conseguiria, se tudo fosse estático, disciplinar a infinita casuística dos fatos. Está sempre um passo ou fato aquém.
Um sistema jurídico que condicionasse sua evolução a alterações na sua legislação seria próximo de estático ou teria um desenvolvimento lentíssimo, tomado o termo desenvolvimento como a alteração da regra jurídica para atualizá-la às mudanças de valores, ao progresso da ciência etc. Mostrar-se-ia a todo instante anacrônico, para usar de um termo da moda.
Não resta dúvida de que, sob condições sociais em alteração, com áreas do direito para as quais a legislação não tenha sido atualizada, atribuir valor sagrado à legislação seria um formalismo exagerado e uma ofensa à equidade (no sentido do mais justo). Precisamos, sim, de outros mecanismos para sincronizar o sistema jurídico com essas alterações.
O principal “mecanismo” do qual podemos lançar mão, o mais eficaz certamente, assim nos ensina a ciência política (não vamos agora inventar a roda), é a jurisprudência, entendido este termo como o conjunto de decisões proferidas pelo Poder Judiciário na interpretação dos diversos temas jurídicos de ontem e de hoje. É fato: a evolução ou câmbios de jurisprudência são bem mais comuns – pelo menos, normalmente, sem exageros, devem ser – que as alterações na lei.
E é fato também: tem sido a jurisprudência – mesmo tão atacada, justa ou injustamente –, na interpretação da Constituição e da legislação como um todo, que nos tem dado, em muitos casos, a necessária sincronia entre o nosso sistema jurídico e a realidade que nos cerca. Na verdade, como explica Andrés Ollero Tassara (em “Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial”, Centro de Estudios Constitucionales, 1989), “a sucessão de paradigmas interpretativos na aplicação de idêntico texto legal vem exigida pela história da realidade social e jurídica, constituindo uma exigência da justiça”. Muito embora, evitando exageros, “para garantir a justiça e – subsidiariamente – preservar a segurança jurídica, o juiz tem de apresentar uma fundamentação objetiva e razoável.
Deverá fazê-lo em todos os casos em que mude de critério interpretativo diacronicamente, diferentemente do legislador, cujo relacionamento direto com a soberania popular faz presumir legítima qualquer mudança normativa, devendo justificar tão-somente as mudanças que impliquem um tratamento sincrônico desigual entre os cidadãos”.
Assim o dizem Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão (“Comentários ao Código de Processo Civil”. v. 5, RT, 1998): “Indubitavelmente a jurisprudência tem se antecipado às legislações na solução dos conflitos de interesses. Não poderia ser de outra forma porque a legislação é mais estática do que o juiz. A letra da lei perpetua-se, esperando a interpretação judicial quando suscitada nas controvérsias. No entanto, a evolução da sociedade é surpreendente. As relações humanas cada vez mais intensas impõem o chamamento judicial aos debates nos litígios, substituindo o código que, às vezes, tem contra si a revolta dos fatos na expressão de Gastão Morin. Mas o juiz não pretenderá ser o legislador, apagar os escritos legais, substituindo-os, mas sim adaptá-los à realidade, ao tempo e ao caso porque é impossível imaginar-se a lei solvendo todas as questões, as pendências, as dúvidas, no vasto emaranhado das interações sociais. Não foi sem razão a perspicaz nota de Seabra Fagundes sobre a posição do juiz brasileiro na aplicação do Direito, concorrendo para o aprimoramento do Direito como condição de paz e de justiça entre os homens. Aplicando a lei, adequando-a à utilidade social e ao bem-estar do indivíduo”.
Aí citei, mesmo que indiretamente, Seabra Fagundes. E o conterrâneo sabia das coisas.
Marcelo Alves é Procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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