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domingo - 19/05/2024 - 08:50h

“Meu vô”, meu herói…

Por Marcos Araújo

Pietro, o menino gaúcho que sobreviveu à enxurrada (Foto: Reprodução UOL)

Pietro, o menino gaúcho que sobreviveu à enxurrada (Foto: Reprodução UOL)

Nesta crise climática e humanitária que vitimou o Rio Grande do Sul, nada me foi mais comovente do que o depoimento de uma criança chamada PIETRO, talvez da idade dos meus filhos (uns 09 a 10 anos). Narrando sua desventura sem qualquer engasgo de choro, contou ele que estava com os seus avós quando a casa desmoronou, tendo sobrevivido porque passou três dias agarrado a uma árvore, salvo da submersão na correnteza pelo avô.

No seu depoimento em vídeo, o vocativo “MEU VÔ” aparece algumas vezes, sempre num ato de heroísmo: saltando de casa para uma árvore; em momentos, da árvore para outra; noutro sustentando a avó, para ela não submergir; em outro, abraçando o neto e resgatando-o por duas vezes, para que o turbilhão da água não o levasse…

Em que pese o esforço hercúleo do “Meu Vô”, diz Pietro que a avó não sobreviveu. Sua história afivelou o meu coração de neto de profunda nostalgia. Todos os meus sentimentos de solidariedade e ternura recaíram sobre estes dois personagens da tragédia: Pietro, pela tristeza da infância roubada, obrigando-lhe a fazer um relato amadurecido da morte; seu Avô, que fez o possível e o impossível para salvar a família.

Fico às vezes absorto pensando sobre a importância dos avós no aperfeiçoamento da sociedade e na educação interna das famílias. Inspiro-me nos meus avós maternos, Raimundo e Idalina.  Nos jardins da minha memória, onde o tempo dança ao ritmo suave das lembranças, reservo um legado de bravura e sacrifício próprio do heroísmo para eles. Foram eles titãs que moldaram o nosso mundo existencial com suas mãos calejadas e corações generosos. Foram eles como faróis na tempestade, guiando-nos através das tormentas da vida com sua sabedoria e experiência.

O heroísmo dos nossos avôs transcende as páginas da vida e se enraíza profundamente em nossos corações.  São feitos anônimos, cujas façanhas passam despercebidas aos olhos até mesmo dos filhos. Meus pais, avôs de 40 netos, ensinaram a eles (aos netos) muito mais do que nós mesmos (os pais).

Queria ter sido uns 5% (cinco por cento) do que os meus pais conseguiram ser em todas as latitudes existenciais: no campo do trabalho, do exemplo, do amor pelos filhos, da profissão, da dedicação aos amigos… Meu pai, um simples campesino, foi mais sábio e professor em vida do que eu, que ostento diplomas inócuos de uma escolaridade obrigatória. Minha mãe, uma costureira, teceu em torno de si uma rede autêntica de valores e moral que jamais alcançaria.

Voltando aos netos, hoje eles não respeitam, nem idolatram, seus avós como eles merecem. A juventude do presente se ressente das orientações e experiencias dos avós, por considerá-los ultrapassados, mas adoram as “filosofias” dos rappers, as frases de efeito dos neurolinguistas, as rimas sem estética dos funkeiros, os bordões idiotas do piseiro. Em favor dos “ídolos” e “heróis” da atualidade, nossos jovens são capazes de enfrentar filas quilométricas e dias de sol e chuva para ter o prazer de visualizá-los por uma hora apenas, com direito até a adoecer ou morrer como aconteceu no Brasil com os fãs de Taylor Swift e Madonna, mas são incapazes de se submeterem a uma espera de uma hora para um cadastro de emprego.

São incapazes de “perder” 30 minutos na semana para um almoço na casa dos avós, ou de irem à farmácia comprar o medicamento deles. Levá-los a um passeio é algo impensável. Mas, é justamente essa juventude da idolatria barata, do heroísmo de fancaria, que por falta de referenciais de dificuldade a qualquer tropeço se quedam em angústias e se dopam em medicamentos. Somos a sociedade do Zolpiden.

Os netos de antanho registram, quase sempre, o papel relevante do avô. Jean Paul Sartre, filósofo e escritor francês, em seu livro autobiográfico “As palavras”, conta que seu avô, plantou no seu coração a semente da vocação de escritor e da descoberta do sentido moral e social do ofício que o transformou em um dos maiores escritores de seu tempo: “Estes aí, menino, foi teu avô que os fez. Que orgulho! Eu era neto de um artesão especializado na confecção de objetos sagrados, tão respeitável quanto um fabricante de órgãos, quanto um alfaiate eclesiástico” (1964, p. 32).

Outro francês famoso, Vitor Hugo, eternizou nos versos A quoi je Songe, o valor da voternidade. Em relatos autobiográficos o colombiano Garcia Marques relembra a amizade singular vivida com o avô em cuja casa viveu sua infância. A literatura nacional tem no relato de Monteiro Lobato, num gesto de profundo respeito e legitimidade da criança, as estórias de uma avó heroína como Dona Benta.

Precisamos ressuscitar o antropocentrismo. Nós somos o que somos graças aos nossos ancestrais. Descendemos de pessoas fortes, que nos deram testemunhos da força do espírito humano. Ao avô de PIETRO, e a ele próprio, as minhas reverências. São eles os heróis desta tragédia. Foram eles que me fizeram lembrar que mesmo nas circunstâncias mais adversas, é possível encontrar esperança e coragem. E repuseram nos jardins da minha lembrança a memória dos meus avós heróis.

Viva ao “VÔ” de Petro. Viva aos avós!

Marcos Araújo é advogado, escritor e professor da Uern

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Marcos Ferreira diz:

    Querido xará Marcos Araújo,
    Boa tarde/noite.
    Demorei a ler seu texto (bela crônica) hoje, pois os desconfortos renais arranharam meu domingo, porém agora estou aqui com a leitura realizada. Que beleza, meu amigo! Que aula de humanidade! Esses episódios (cenas pungentes) no Rio Grande do Sul têm escancarado as comportas do meu coração e dos meus olhos. E esse recorte da tragédia tão bem emoldurado por você me tocou de modo profundo. Mas algo importantíssimo que você troxe à baila foi essa porra-louquice de uma imensa parcela da juventude dessa geração cabisbaixa (de olhos sempre voltados para o chão, para as telinhas dos seus aparelhos telefônicos, entre outros dispositivos. Eu fico intimamente indignado, por exemplo, quando ouço e vejo esses narradores de futebol na televisão chamando atletas multimilionários de “nossos heróis”. Isso, a meu ver, é um acinte, uma afronta a tantos verdadeiros heróis (como avós e avós, pais e mães) que criaram ou criam os seus filhos e netos com recursos mesquinhos. São poucos os jovens de famílias pobres que conseguem vencer essa piracema social e adquirir um lugar ao sol, uma vida digna, longe da marginalidade, das drogas e dos crimes. Acho que me empolguei e falei demais. Isso tudo, porém, é para concordar com as suas justas e oportunas palavras na crônica deste domingo. Parabéns!
    Abraços

  2. JERONIMO DIX SEPT ROSADO MAIA SOBRINHO diz:

    Maravilhoso conto, Professor Marcos Araújo!

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