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domingo - 21/06/2015 - 16:20h

Nós e Agnelo Alves

Por Rubens Lemos Filho

Há homens esquivos. Eles sentem piedade. É mais cômodo. Há homens solidários. Eles são feitos de gestos. É prova de dignidade. Escrevo na aplicação da terceira regra do futebol, a da substituição. Sou um reserva de menos talento que o titular absoluto do espaço aberto e amplo como a ternura do coração do meu pai e do seu afeto pelo seu compadre Agnelo Alves, seu amigo das noites sombrias e solitárias.

Minha mãe guardava uma foto que aconselhei jogar fora após a morte de Rubens Manoel Lemos, a 4 de junho de 1999. A imagem datava de 1973, após a sua volta, uma das tantas, fugido do Chile e após 44 dias de tortura no DOI-CODI no Recife, repressão barbarizando seu ódio e sua tirania.

Fomos passear de carro. O do meu pai era um velho Fusca, que ele batizara de “Louva-Deus”, por não ter tapete no piso, coberto com papelão, e se transformar em barco ao passar em qualquer poça de lama. Foi o primeiro divertimento em família após quatro anos de angústia desde que Rubens Pai e Isolda casaram.

Paramos na calçada, papai, mamãe, eu, minha irmã com um ano de idade, duas primas e minha Tia Ana bateu a fotografia. Nosso semblante refletia a exaustão da descrença. Papai, de cabelos longos, vestia uma calça boca de sino imensa. Magro esquálido, ossudo, seu cinto quase dava duas voltas.

Parecia um faquir de circo. Sorria, desdentado. Tiraram-lhe dentes e unhas no cárcere para onde foi sem ter roubado, assaltado ou matado. Por ter ideias diferentes, apenas. Eu, como de hábito, na época, de olhar retraído, agachado entre as pernas de mamãe como a esperar por algum raptor a me carregar para nunca mais vê-la.

Nosso passeio foi possível por um fato muito especial: Rubens Lemos recebera seu primeiro salário de jornalista da Tribuna do Norte e de comentarista de futebol da Rádio Cabugi. Fizera supermercado e dera entrada no carrinho.

O proscrito, que não conseguira nem padrinho para batizar a filha, fora resgatado pelo jornalista Agnelo Alves, a esperança que chegou para nunca mais sair de nossas vidas. Agnelo e Dona Celina.

Papai procurou Agnelo que demonstrou uma coragem pessoal que nenhuma musculatura física será capaz de superar enquanto a minha família for viva e procriar para contar e reconhecer com gratidão e orgulho.

Nenhum sujeito normal, trivial, devidamente obediente aos rigores das baionetas, atenderia um telefonema, responderia a um aceno, apertaria uma mão, aceitaria um abraço, abriria a porta de sua casa, convidaria para uma confraternização um perseguido pelo Golpe Militar. Só para lembrar aos esquecidos da coloração das nuvens daquela época. Empregá-lo, só sendo macho ou doido. E louco Agnelo Alves nunca foi.

Rubens Lemos, de matrapilho e maltratado, de escombro humano, passou a novamente gente, trabalhando, escrevendo com o seu lirismo, produzindo crônicas deliciosas, fazendo comentários fantásticos no auge do futebol potiguar quando o Estádio de Lagoa Nova, semente plantada por Agnelo, prefeito, antes de ser cassado covardemente, levava, em média, 45 mil pessoas a cada ABC x América. Mas, incorrigível idealista, falava em samba de protesto, para irritação dos cruéis censores e desespero de quem lhe acolheu.

A amizade entre Rubens Lemos e Agnelo Alves me fez entender a vida como estrada de fraternidade. Abomino dogmas, ideologias, fanatismos, sectarismos, extremismos, ditaduras, Esquerda, Direita, Centro. Rubens Lemos e Agnelo Alves nunca convergiram na política. Mas eram siameses na convivência.

Agnelo nos convidava a sua casa aos domingos. Íamos todos. Papos intermináveis. Mamãe preparava o batismo católico do meu irmão mais novo e papai, um ateu de alma tocada em chorinho proclamou, à mesa do jantar: “Só quem tem condições de levar Camilo à pia batismal sem hipocrisia, de me fazer entrar numa igreja de alma aberta é Agnelo, que é um cristão praticante, não um puritano”. E assim se fez.

Nas idas e vindas de Rubens Lemos, que fez da sua vida o seu próprio exílio, o porto seguro sempre foi Agnelo Alves. Papai partia a São Paulo, voltava a Natal, sempre para a Rádio Cabugi. Chegava em casa com a notícia. “Tudo certo com Agnelo. Comento o jogo de domingo.” Mamãe agradecia a Deus pela comida e o nosso colégio pago e eu me perguntava, ainda menino, em que se baseava a tolerância daquele patrão. Amizade genuína. Apreço pelo talento. Irmandade de luta.

Trabalhei com Agnelo Alves como editor do Bom Dia RN na TV Cabugi por dois anos. Já havia trilhado os caminhos do meu pai na Tribuna, convivendo com Aluizio Alves e José Gobat, que formavam a trinca de uma geração insubstituível.

Dizer que aprendi com Agnelo Alves sobre a matéria sagacidade política é redundância. Da capacidade de percepção da espécie humana, idem. Especialmente nos cafés após o programa. Ganhei o apelido de Rubinho Rubirosa. Só ele e Chiquinho Alves me chamam assim.

É dele a melhor definição sobre o amigo, num artigo emocional, escrito logo após a morte de Rubens Lemos. Agnelo Alves definiu o meu pai como se escrevesse o epitáfio que nunca pus em seu túmulo: “O Militante do Sonho”.

Mais tarde, prefeito consagrado pelo povo de Parnamirim, sacudiu nossas emoções fragilizadas inaugurando a Escola Jornalista Rubens Manoel Lemos, frutificando o sonho da liberdade do povo pela educação. Obrigado Agnelo, Peregrino da Solidariedade. Em meu nome, de Isolda, Yasmine e Camilo, o afilhado.

Rubens Lemos Filho é jornalista, cronista e escritor

* Texto publicado em 2012 no livro Agnelo Alves, oito décadas, biografia do repórter falecido neste domingo, 21 de junho de 2015)

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. naide maria rosado de souza diz:

    Texto lindo, levou-me ao choro.

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