• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 24/05/2020 - 10:00h

Sozinho

Por Ary Dulcídio

Era um garoto de modos taciturnos, nunca teve muitos amigos, ou melhor, nenhum. Depois que se mudou de sua cidade natal para estudar, nem a família sobrou.

Sempre tentou se enturmar, mas sua estranheza acabou por torná-lo definitivamente solitário. Embora isso fosse o que mais o incomodava, percebera que seus esforços seriam insuficientes. Nem mais tentava se socializar.

Sobrevivia por meio de uma mesada que recebia dos pais. Morava sozinho, um pouco isolado do centro da cidade, em um casebre, com apenas uma suíte, de um tio que passava uns anos no exterior. Estava no período de recesso da faculdade na época da história que se segue.Todos os dias, naquele tempo, eram iguais. De manhã, preparava a comida para o restante do dia; à tarde, desenhava e pintava até a exaustão; e à noite, antes de dormir, lavava a louça que sujara durante as refeições. Era organizado e metódico.

Como o ciclo da vida, sua rotina prosseguia. E continuou, até que, certo dia, ao resolver tomar seu leite matinal, se surpreendeu: havia uma pontual xícara que repousava, suja de café, sobre sua bancada fria de granito.

Sentiu um misto de medo e dúvida. Realmente, fizera café no dia anterior, mas se lembrava perfeitamente da imagem satisfatória de sua pia limpa.

Devia ser coisa da sua cabeça. Checou a porta da frente e estava trancada. As janelas eram todas gradeadas. Isso foi suficiente para ele continuar o dia normalmente.

Rotina santa de cada dia – já havia passado a manhã cozinhando, a tarde desenhando e pintando; agora, ele se via novamente lavando a louça de noite. Dessa vez, lavara tudo, com certeza absoluta, não restava mais nada largado à pia.

A última coisa que se pode lembrar sobre aquele dia é seu olhar inquietante em direção à xícara, antes de guardá-la em seu devido local.

Dormiu bem. Seguramente havia trancado a porta.

O sol já raiava. Ele precisava tirar a prova. Foi como um raio até a cozinha.

Não podia ser possível… após olhar aquela cena, correu imediatamente para verificar: a porta estava trancada. Já não entendia mais nada. A xícara estava novamente suja de café e apoiada sobre a pia. E, dessa vez, fora pior, ele nem havia feito café no dia anterior e, mesmo assim, sua cafeteira estava suja. Imediatamente a lavou junto com o utensílio de porcelana.

O medo e a dúvida o faziam delirar. Acabou por não preparar comida pela manhã. Do sentimento de aflição, veio a ideia, e a tarde foi artisticamente produtiva. No início da noite sua casa estava lotada de desenhos e pinturas daquela imagem que tanto o perturbava: a xícara vazia com resquícios de café.

Decidiu-se. Passaria a noite acordado e descobriria de uma vez por todas o que estava acontecendo.

Foi à cozinha e pegou a mais afiada e lustrosa de suas facas. Lá estava ele sentado na escuridão de sua sala, rodeado de seus quadros e rabiscos, enquanto empunhava aquele fatal utensílio.

Não havia certeza, mas sentia que alguém o observava. Apertava cada vez mais a pegada no cabo de sua arma branca, que agora quase deslizava devido à sudorese anormal de suas mãos.

O sol voltava a raiar mais uma vez. Nada de extraordinário havia acontecido.

A frustração era perceptível em seu rosto. Foi à cozinha e lá estava tudo como havia deixado na manhã anterior: nenhuma xícara ou cafeteira fora do lugar e a porta continuava trancada. Novamente, não podia ser possível… nada acontecera justamente quando resolveu tomar providências.

Tentaria outra vez, mas de maneira diferente. Passou o dia e a tarde em meio à produção de sua arte, e à noite, já era hora de pôr seu plano em prática.

Deixou preparado o melhor café que fizera em toda a sua vida, pôs a faca do dia anterior dentro de sua jaqueta e saiu de casa, assegurando-se de trancar a porta, em meio à escuridão.

Durante sua caminhada por entre os grandes espaços vazios nos arredores de sua casa, pensava em sua solitária vida e, após duas horas assim, decidiu que era hora de voltar.

Retornou à sua casa. Ao se aproximar da porta de entrada, foi pondo sua mão lentamente sobre a maçaneta e, após um suspiro, girou-a. Desta vez, estava destrancada – um calafrio subiu pela sua espinha.

Adentrou a casa já com a faca em mãos e assim chegou à sala. Não pôde acreditar. Realmente havia alguém: um homem estranho admirava de pé as obras que o esperavam enquanto tomava seu café. Na cintura do desconhecido, estava pendurado um molho de chaves que reluzia à luz lunar que invadia o cômodo pelas frestas da janela.

Com o medo, as mãos do artista ficaram trêmulas e a lâmina que empunhava agora ia de encontro ao chão. O som metálico que o utensílio produziu chamara a atenção do estranho e os dois homens se fitavam.

O medo, que cercava o dono da casa, ia embora à medida que se aproximava do estranho e, com um súbito abraço unilateral, de sua parte, já não sentia medo algum. E, em meio às lágrimas, teve a oportunidade de não se sentir sozinho pela primeira vez em sua vida.

Ary Dulcídio é estudante

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. JOSE CARLOS DE OLIVEIRA diz:

    Parabéns.otima reflexão

  2. Inacio Rodrigues diz:

    Sou totalmente suspeito pra opinar, pois o autor é meu filho, que tem 16 anos, mas achei o texto bem maduro para a idade dele. Que venham outros. Obrigado Carlos pela generosidade e oportunidade ímpar! Divulgar um texto no mesmo espaço de François Silvestre, Dr Edilson Pinto, Dr Marcos Araújo e tantos outras personalidades incríveis, motiva qualquer adolescente que tenha vontade de escrever! Abração.

  3. JOSE ROBERTO diz:

    Muito bom o texto! Prende a atenção desde as primeiras linhas. O mais interessante é que o aspecto de suspense deixa uma certa ansiedade para descobrir o final. Entretanto, no final o leitor pode tirar suas próprias conclusões do que pode ter acontecido. Realidade ou fantasia?! Parabéns, Ary! Espero que em breve nos presenteie com outros textos!

  4. Odemirton Filho diz:

    Parabéns ao jovem escritor. Muito boo o conto. Que
    seja a primeira de muitas.

  5. Ailson Fernandes Teodoro diz:

    Parabéns, Ary. Um belo texto! Parágrafos bem articulados. Respeito a pontuação. E plasticidade literária, o que em minha opinião é muito difícil de se dar, quando trata-se de uma narrativa com apenas dois personagens. Um jovem narrador e o homem que aparece no fim da história.

  6. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Que beleza, Ary! Prossiga na escrita! Parabéns!

  7. Marcel Pina diz:

    O autor integrou muito bem a narrativa, os personagens e o enredo. Linguagem bem acessível, organizada em uma sequência de fatos interligados e dentro de uma relação temporal lógica. Uma crônica que nos induz a um momento de autorreflexão. Como dizia Tom Jobim: “É impossível ser feliz sozinho”. Diante de tamanha sensibilidade, se avizinha um futuro de um homem com características especiais. Parabéns ao jovem Ary!

  8. Andson Rodrigo diz:

    Parabéns, Ary! Você não me conhece, mas sou amigo do trabalho de seu pai.
    Ótimo texto, garoto, principalmente p’ra um rapaz de 16 anos. Demonstra que está em dia com a leitura, que gosta de escrever e que dedicar mais tempo a essas atividades é um ótima ideia de sua parte.
    O texto até lembra, de certa forma, a ambientação e a solidão do personagem central do clássico Crime e Castigo do gigante Dostoiévski.
    Continue produzindo; muito bom saber de um jovem se dedicando à escrita.

  9. FABIO FERNANDES DE SOUZA diz:

    O jovem autor transmite em sua crônica uma narrativa com tom de suspense e imaginação, gerando durante toda a leitura uma expectativa lógica dos fatos. Parabéns ao jovem Ary.

  10. Demóstenes Vieira diz:

    Olá, Ary!
    Que conto fantástico! A quebra de expectativa ao final foi excepcional! Quem estava tomando o café?! Era de fato um homem? Seu tio? Seu pai? Um invasor!? Uma assombração!? Era o que eu me perguntava enquanto lia o conto. Seu conto é muito envolvente e traz um tom de mistério, ao mesmo tempo em que constrói uma narrativa psicológica muito boa. Para não esquecer, eu amei a xícara! Para a literatura uma xícara jamais será somente uma xícara!
    Parabéns!

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