• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 16/02/2020 - 08:40h

Todos têm chance

Por Inácio Augusto de Almeida

Quase todas as tardes, ao sair da faculdade, cruzava com aquela mocinha franzina e de olhos tristes. Seu vestido simples e as suas já gastas sandálias japonesas, destoavam do seu ar gracioso e inteligente.

Até que um dia…

– O senhor é o seu Inácio de Almeida?

A voz humilde e fraca surpreendeu-me. Fiquei meio atarantado, sem nem sequer saber o que responder. E para não ficar calado…

– Sim, sou eu.

Com a  vista baixa e tendo nas mãos alguns livros, ela se apresentou:

– Eu sou a Regina. Já li os seus livros.

– Ótimo.

Falei e já iniciava a caminhada quando ela insistiu:

– O senhor fala muitas coisas com as quais eu não concordo. É engraçado o que o senhor escreve, mas é irreal.

O português correto, a crítica, para ela, lógica; enfim, como poderia uma criatura tão simplória possuir tais conhecimentos? Respirei fundo e olhando-a nos olhos, para isso quase me abaixando, respondi-lhe:

– Você, minha filha, ainda é uma criança. Não se deixe influenciar por esta gente que eu ridicularizo. No fundo são bem piores, na realidade são uns calhordas. Usam as pessoas como instrumentos e depois fazem o que fazem…

Ela apenas riu. Riu e se despediu dizendo já ser hora de preparar o jantar, senão a patroa iria passar-lhe uma reprimenda.

O vulto se perdendo na distância e eu a rir…

Uns três dias depois, eis a mocinha novamente.

– Seu Inácio.

– Diga mocinha (não conseguia me lembrar do nome dela).

– Meu nome é Regina, disse rindo.

– Claro, claro que é Regina, e ri também.

– Eu vim aqui para ver se o senhor conseguia na biblioteca da faculdade alguns livros para mim. Eu lhe garanto que devolvo todos. O senhor não precisa se preocupar.

A coisa começava a ficar meio embaraçosa. Uma empregada doméstica a querer ler livros de nível universitário. A querer, não, pois segundo ela já os lia há tempos. Resolvi arriscar-me a pagar alguns livros…

– Vou conseguir para você os livros que desejar. Se não tiver na biblioteca eu os arranjarei em outro local.

Seus olhos encheram-se de brilho. Uma alegria enorme iluminou todo o seu semblante. A mocinha era pura vibração.

– Consiga para mim aquele do Josué de Castro, Geografia da Fome.

Passei a mão no queixo. E engoli a saliva umas duas ou três vezes.

– Claro. Venha amanhã que eu estarei com o livro.

E lá se foi a Regina preparar o jantar de uma patroa qualquer.

– Trouxe o livro?

– Boa tarde, Regina. O livro está aqui. Agora, diga-me uma coisa. A que horas você lê?

– À noite, depois de lavar os pratos do jantar. É quando minha patroa fica vendo novela e não me aperreia. Aí eu leio até tarde da noite. Tem dia, seu Inácio, que quase não durmo.

– Regina, acabe com este negócio de seu Inácio. Por que você não frequenta um colégio como todas as pessoas? Você é inteligente e tem muita força de vontade. É só você querer e dentro de alguns anos estará dentro de uma Faculdade.

Ela apenas riu. Não, não me disse nada, apenas riu. E quando iniciou a sua caminhada, virou-se e, com aquela sua extrema humildade:

– Eu tenho que ir. Está na hora de fazer o jantar.

E muitos e muitos foram os livros que consegui para Regina. O tempo passando, eu quase terminando o curso, ela, cada dia me parecendo mais magrinha.

E terminei tendo que pagar alguns livros. Regina há mais de um mês não aparecia.

“É a humanidade. A gente faz a coisa com a melhor das intenções e recebe como troco a desonestidade, a ingratidão. Mas isto não vai ficar assim não. Vou descobrir onde ela mora. Os livros eu recebo!”

Pergunta aqui, pergunta ali, consegui descobrir o endereço da patroa de Regina.

– Boa tarde, senhora. Eu desejo falar com a Regina.

A mulher baixinha, gorducha e com cara de imbecil olhou-me como quem olha para um ser do outro mundo.

– Aquela maluca eu mandei embora. Andava tossindo muito. Desconfiei que estivesse tuberculosa. Também, gastava o dinheiro todo com livros. Toda semana chegava com dois três livros diferentes.. Tinha a mania de passar as noites lendo. Era maluca e…

A velhota gorda a falar e eu a não ouvir mais nada. Tudo girava em torno de mim, como se eu estivesse embriagado. A muito custo consegui perguntar onde moravam os pais de Regina.

– Sei muito bem não. Parece que é para os lados das Barrocas.

E bateu a porta na minha cara. Certamente a novela da tarde ia começar…

Depois de gastar quase um dia todo, finalmente chego à “casa” dos pais de Regina. Uma choupana feita de estacas, enrolada em esteiras de palha e coberta de latas. No fundo de uma rede que avistei ainda de dentro do carro, um velho deitado. Ao seu lado, uma velhinha tão magra que tive dúvidas se era uma pessoa ou um esqueleto.

– Pode entrar moço. O senhor deve ser o seu Inácio. Regina falava muito no senhor. Mas não se preocupe, não. Os seus livros estão aqui. Era no que ela mais falava nos últimos dias. Pedia demais, chegava até a implorar para que eu não deixasse de entregar os livros ao senhor. Eu só ainda não tinha ainda ido porque estava esperando o Nicó (apontou para a rede) melhorar. Ele pede esmolas, é cego, e como está doente, não pode sair. E sem o dinheiro da passagem não pude ir entregar os seus livros. Mas eles estão aqui.

– No caminho de volta, lembrei-me do sorriso de Regina. Eu a dizer para ela que todos têm chance, ela a rir aquele seu sorriso puro.

“Todos têm chance, todos têm chance, todos têm chance…”

Inácio Augusto de Almeida é jornalista e escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Antonio Rinaldo diz:

    Isso é uma crônica ou os fatos são reais?
    Se são reais, onde estava Regina?

    • Inácio Augusto de Almeida diz:

      Onde está Regina?
      Regina está nos campos e nas cidades.
      Regina está em todos os lugares.
      Com certeza tem uma Regina bem do seu lado e você não está percebendo.
      Ainda bem que você não me perguntou onde está a velha gorducha, baixinha e com cara de imbecil.

  2. Roncalli guimaraes diz:

    Bela crônica. Também creio , todos têm chance

  3. Gutemberg Dias diz:

    Todos têm chance. E ela pode surgir do nada. Não podemos não acreditar em nós mesmo. É um erro enorme quando não fazemos isso. Tudo depende do Eu, se o Eu quer o Eu conseguirá. Um mundo é feito para que nós não possamos dar certo, basta observar o quantitativo de obstáculos que temos que transpor dia após dia. Por isso, acreditar em você mesmo é o primeiro passo a tudo que almejamos na vida. Não resta dúvida, todos têm chance!!!

    • Inácio Augusto de Almeida diz:

      É fácil dizer que todos têm chance quando se está ligado a um grupo que facilita tudo a quem vive de vender ilusões.
      É fácil dizer que todos têm chance que se promove eventos ao qual ninguém comparece e tudo cai no maior esquecimento porque só interessa divulgar o que dá certo.
      Que chance tiveram na Russia de Stalin os que se opuseram ao maior criminoso da história? Chance de morrer nos campos de concentração da Sibéria?
      Que chance têm os venezuelanos que fogem do comunismo de Maduro e esmolam pelas ruas de Mossoró?
      Que chance tiveram os cubanos fuzilados pelo sanguinário comunista Fidel Castro?
      Que chance têm os que vivem na Coréia do Norte?
      Que chance têm os que vivem num regime que proíbe a saída dos que não aceitam viver na escravidão?
      E ainda tem quem queira implantar este regime no Brasil.
      Que chance tem um jornalista/radialista que, por não aceitar calar-se ante a corrupção, é proibido de participar, mesmo por telefone, de qualquer programa de rádio?
      Que chance teve Regina se a ela faltou quem a ajudasse na partida.
      Para os que sempre contaram com a ajuda de grupos é fácil dizer que todos têm chance.

  4. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Sr.Inácio. Mais uma Crônica linda. Triste a morte de Regina. As chances estavam com ela!

    • Inácio Augusto de Almeida diz:

      As chances não estavam com a Regina.
      Regina era uma enorme alavanca a quem faltou um ponto de apoio.
      Quantas Regina a senhora conhece e talvez nem perceba estar diante de uma?
      Regina simboliza os milhões que morrem tentando encontrar uma saída.
      Muito obrigado por ter lido a minha crônica.

  5. MANOEL diz:

    Onde estar a Regina seu Inácio ?

    • Inácio Augusto de Almeida diz:

      Onde está Regina?
      Olhe do seu lado.
      Quantas Reginas estão bem pertinho de você…
      Ou você não conhece alguém que madruga em busca de trabalho?
      Ou você não conhece alguém preparado que é preterido por uma nulidade qualquer pelo simples fato de não aceitar renunciar a tudo o que acredita?
      Com certeza você está bem próximo de várias Reginas.
      Obrigado pela leitura da crônica.

  6. Inácio Augusto de Almeida diz:

    Lamento uma crônica como esta não ser divulgada nos programas de rádio.
    Fosse eu ligado a algum partido político que defende condenado por prática de corrupção…
    A TODOS OS QUE LERAM ESTA CRÔNICA O MEU MUITO OBRIGADO.

  7. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Todos têm chance…!!!

    RÍAMOS PRA NÃO CHORARMOS…!!!

    Ora cara pálida, quem em sã consciência, haveria de concordar com essa frase, num país de pré-clara e manifesta falta de oportunidades…!!!

    Por um acaso, as REGINAS DA VIDA, tem chance, claro, bastante chances, de perambular pelo estuário da vida tupiniquim em seu secular percurso de abissal exclusão social, tão somente lamentando estas mesmas falta de oportunidades…Meticulosamente engendradas e planejadas pela nossa elite dirigente desde priscas eras…!!!

    Um baraço
    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  8. Inácio Augusto de Almeida diz:

    Simão Bacamarte pode ser dispensado.
    Aqui as crianças não param de rir.
    Elas leram a crônica e quando se depararam com comentário tão surreal não mais param de rir.
    Quando menino eu brincava de mandar o outro tomar um simancol.
    Não sei se simancol algum dia existiu. Sei que funcionava.
    Estou pensando em fundar o clube dos pacóvios, a corrida ao dicionário vai ser grande, e o sócio nº 1 já está escolhido. E como sendo sócio nº 1 receberá na ocasião o título de sócio remido…
    Será que aconteceu outra corrida ao dicionário?
    Aqui do lado Zé Buchudinho me lembra o Genival Lacerda dizendo que eu vou terminar matando o velho.
    Aurélio?
    Lá se vai outra consulta ao dicionário.
    KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

  9. Helena Leite diz:

    Bom dia! Bela crônica. Parabéns!
    Sou filha do poeta e jornalista Rogaciano Leite. Não sei se é o sr. Inácio Almeida que conheceu o meu pai. Se for, por favor, entre em contato. Esse ano é o Centenário dele e abrimos um perfil no facebook CentenarioRogaciano Leite. Será muito importante conversar com o senhor. Gratidão, Helena Roraima

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