• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 03/01/2021 - 16:00h

Sonhos de consumo

Por Marcos Ferreira

Algumas vezes me pego frustrado, desgostoso comigo mesmo, ao examinar minha trajetória “profissional” e perceber que não me profissionalizei em coisa alguma. Exatamente. É algo demasiado incômodo chegar a esta altura da vida (cinquenta janeiros) sem ter me tornado outra coisa exceto um aramista e malabarista de palavras. Não que o arame e os malabares do nosso idioma, mal ou bem manejados, signifiquem uma desonra. De modo algum. Aliás, com perdão da imodéstia, admito me orgulhar do razoável equilíbrio que adquiri na corda bamba — sem rede de proteção! — da palavra escrita. Esta é uma atividade na qual muitos equilibristas de reputações e currículos musculosos terminam se esborrachando.

Agora, no entanto, não adianta chorar o leite derramado nem lastimar o que eu poderia ter feito e que não fiz. Águas passadas! O tempo gasto, como a flecha despedida de um arco, não pode ser trazido de volta.Talvez por vocação, para não usar agora o termo mediocridade ou conformismo, aprendi bastante cedo a me regozijar com pequenas coisas, prazeres miúdos, sobejos e nonadas de um mundo que nunca me foi pródigo ou farto. Assim, na corda bamba desde a mais tenra idade, adquiri o reflexo e a condição de me equilibrar emocionalmente, até certo ponto, durante décadas a fio.

Hoje, então, para mais este ano que principia, minhas ambições e sonhos de consumo continuam modestos. Almejo primeiramente, com redobrado ardor, que nos libertemos desse falso e diabólico Messias que desgoverna o Brasil — vírus de carne e osso ene vezes pior que o da pandemia. Sobretudo porque não existe, até onde sei, uma vacina contra mal tão corrupto e corruptor sendo desenvolvida.

Mas não quero falar sobre o corona ou sobre a política funerária do Coveiro federal, que zomba dos mortos e das famílias enlutadas impune e olimpicamente. Sim. Quase duzentos mil mortos, por enquanto, e o Língua-de-Papagaio (observem que ele fala com a língua dançando na boca) continua fazendo pouco-caso da situação. Enquanto isso, em meio à desordem e retrocesso, milhões de brasileiros afundam na miséria absoluta. Por ironia, 2020 foi, por exemplo, o ano de ouro dos gigantes na fabricação de máscaras, de álcool em gel e do comércio de caixões de defunto.

Outro negócio que bombou em 2020 foi o das rachadinhas — essa palavra precisa urgentemente ser abonada pelos dicionários oficiais. No clã Bolsopata, portanto, assistimos ao apogeu dos funcionários laranja, safra nada menos que recorde, e ao notório superfaturamento de uma fantástica lojinha de chocolates situada num shopping na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. O sentimento de indignação é tal que até parei de comer chocolate. Gostava do tipo amargo.

Antes de baixarem o cacete sobre mim, ressalto que não sou esquerdista, petista e muito menos lulista. Sequer sou católico ou evangélico. Este último, infelizmente, salvo exceções, foi e continua hipnotizado pelo falso Messias. Meu partido é o da honestidade, do respeito às pessoas, às diferenças e à democracia. Sim, há políticos honestos, tanto na esquerda quanto na direita, embora sejam raros.

Minha religião é o amor ao ser humano, independente de sua orientação sexual, cor da pele e conta bancária. O que não posso, perdoe-me a outra metade da laranja, é aplaudir um desgoverno deletério como esse, acintosamente machista, homofóbico, misógino, fascista escrachado, cuspidor e intimidador de jornalistas, tipo que menospreza a cultura, apologista de torturadores e alcoviteiro de milicianos.

Hoje, admito, meus sonhos de consumo são ainda menores. Porém desejo um novo ano diferente não só no tocante ao calendário, mas na consciência e atitude das pessoas. Espero olhar para a porta da geladeira e não avistar nenhum recibo de água ou de luz preso no azougue, ameaçado de corte. Que a conta na bodega permaneça em dia e algumas boas léguas de gasolina não faltem no bucho insaciável da minha motoca.

Quero saber o feijão borbulhando na panela dos brasileiros, o leite da manhã com café pingado e os pães quentinhos sobre a mesa. Há também que se ter rapadura na lata e farinha na cuia. Possuo meus vinis de Nelson Gonçalves, de Luiz Gonzaga, e a “mulher pomba-rola” canta feliz na gaiola aberta do meu peito, sem fantasmas de amores antigos assombrando meu coração alforriado.

O Sol vai subindo preguiçosamente, a festa dos meus trapos coloridos já o aguarda no varal. Até agora, creio, nenhum corpo estendido na manhã ruidosa. Cães impossíveis brincam de gato e rato no pavimento esburacado desta rua. O domingo despontou com a tiara multicor de um arco-íris e alguns pássaros ainda redemoinham na boca desdentada dos beirais.

Beberico uma caneca de café escoteiro no parapeito da janela, com vista para a rua. Na calçada da casa em frente, sem dar por meus olhos dissimulados mas sem ressaca, três jovens senhoras varrem o chão e confeccionam a colcha de retalhos da vida alheia. No banquinho chumbado rente ao meio-fio do boteco da esquina, “mal rompe a manhã”, como no verso de Drummond, dois estudiosos da cana-de-açúcar aguardam o pequeno comércio abrir as portas.

Ao que parece, repito, não há sangue nos noticiários, nas rádios, nem horário político na tevê. Também não é fevereiro, de modo que não se ouve os modernos e famigerados carnavais atravancando ruas ou as cruéis vaquejadas no Berrante com forró de quinta. Não há sexo quase explícito no “horário nobre” das telenovelas ou pregão na Bolsa Universal do Reino de Deus. É mais ou menos este o país que pulsa em meu peito nesta manhã de pardais e céu azul.

Não posso dizer que evoluí muita coisa. Não há tanto do que eu deva me orgulhar a esta altura da vida. Contabilizo os mesmos apuros e insucessos. O aluguel, a água, a luz, o amor e a literatura dão conta da minha inadimplência, embora sem vocação para o calote. Outra vez a Mega Sena passou longe do meu bolso raso. Até o meu pré-histórico aparelho telefônico há dias não grita o meu desimportante nome. Fato este, aliás, de somenos importância.

Apesar de tudo, já não me sinto um vira-lata entre os homens. A chibata da exclusão e do preconceito não fustiga minha cútis negra. Minha alma azul não mais habita a sarjeta da completa ignorância. A leitura me trouxe a miopia, no entanto agora consigo enxergar melhor do que antes. Também me sinto “capaz de ouvir e de entender estrelas”.

Adquiri uma insônia teimosa, no entanto meus pequenos sonhos não me abandonaram, pululam entre as horas mortas de minha vida. E tudo isto eu devo àquela simbólica e diversa família de livros; única faculdade que possuo e que me trouxe vários amigos doutores. Seres humanos, sobretudo. Olham-me da parede os olhos cúmplices de Mona Lisa, testemunhando nossas frequentes reuniões e palestras. Há pouco Machado veio ter comigo. Porém retornou à estante para ouvir o que o velho Graça tinha a dizer-lhe. Coisas do além-túmulo, decerto.

Prezo por essas ilustres companhias e amizades de tinta e celulose. Um homem sem livros é um homem sem alma.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Magno diz:

    Nosso maior escritor, injustiçado, diga-se. Merecedor de todos os aplausos. Um grande poeta. Mossoró é pequena demais e não sabe valorizar esse grande autor. É preciso que a cidade desperte para valorizar, o mais breve possível, este nosso poeta, na verdade, o maior escritor vivo do RN. Parabéns, Marcos Ferreira, acredito que você é o maior escritor vivo do RN! Parabéns!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Magno,
      Saudações.
      Antes de mais nada, quero lhe desejar um feliz 2021, com muita saúde, paz e realizações. Leio (e releio) suas palavras acerca de minha crônica “Sonhos de consumo”, oferecida a público neste nobre espaço de opinião, informação e cultura, e me sinto sem palavras com que possa lhe agradecer por tão valioso estímulo à minha escrita neste Velho Oeste potiguar. Então, meu caro, vá botando aí na conta de minha dívida de gratidão para com você. Agradeço, portanto, pela sensibilidade e deferência com que tem saudado meu exercício literário.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro Magno,
      Antes de tudo, quero lhe desejar um feliz 2021, com muita saúde, paz e realizações. Leio (e releio) seu depoimento acerca de minha crônica “Sonhos de consumo”, oferecida a público neste nobre espaço de opinião, informação e cultura, e me sinto sem palavras com que possa lhe agradecer por tão valioso estímulo à minha escrita neste Velho Oeste potiguar. Então, amigo, vá botando aí na conta de minha dívida de gratidão para com você. Agradeço, portanto, pela sensibilidade e deferência com que tem saudado meu exercício literário.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  2. Odemirton Filho diz:

    Maravilha de texto, meu amigo. Como sempre, brinda-nos
    com suas belas palavras. Para mim é mais do que uma crônica.
    É uma aula.

    Abraço forte!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Odemirton Filho,
      Saudações.
      Obrigado pela leitura e inspiração que você (a exemplos de outros colaboradores deste espaço) também nos transmite por meio de suas crônicas de admirável fatura literária.
      Um grande abraço deste seu leitor
      Marcos Ferreira.

  3. David Leite diz:

    Ótimo texto, amigo Marcos… Parabéns!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Amigo David Leite,
      Obrigado pela leitura. Vindo de você, poeta de aguda sensibilidade e prosador meritório, fico feliz pelo comentário.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  4. jesse de andrade alexandria diz:

    Que essa gota de bílis negra, misturada a uma insatisfação incontida, produza mais e mais textos desse jaez! Excelente. Parabéns, Marcos. Continuas jogando a fina flor da bola nos gramados mal cuidados da província. Coisa de craque. E que esse canalha tenha o fim que o Anjo da História lhe reservou.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu caro Jessé de Andrade Alexandria,
      É uma grande satisfação reencontrá-lo, em especial neste espaço. Por onde andas, amigo? Espero qualquer dia desses podermos sentar com o Carlos Santos para uma boa rodada de café. Estão convidados. Será uma honra recebê-los aqui em casa, com os devidos protocolos pandêmicos. Grato pelas palavras gentis quanto à minha crônica.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  5. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Obrigado Marcos Ferreira, por nos oportunizar nesta tarde/noite do primeiro Domingo do ano de 2020, de forma direta e simples, não.. não confundir com simploriedade, uma escrita original escrita que se pode perfeitamente cognominar de crônica, artigo do dia, prosa em verso e verso em prosa. Onde o autor nos brinda, ao mesmo tempo que incensando seu talento e divisando frestas da sua vida, da sua história, do seu pensar e da sua alma de nordestino talentoso e resiliente às intempéries sócio/culturais que nos flagelam desde sempre.

    Um baraço
    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro Fransuêldo Vieira de Araújo,
      Boa tarde.
      Mais uma vez, sou-lhe grato pela deferência e leitura de meus textos neste honroso espaço. Suas impressões são sempre gratificantes e representam um grande estímulo ao meu exercício literário.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

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