• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 20/10/2024 - 09:50h

Boulieu

Por Bruno Ernesto

Oratório, Museu Boulieu, Ouro Preto/MG (Foto: Bruno Ernesto)

Oratório, Museu Boulieu, Ouro Preto/MG (Foto: Bruno Ernesto)

Da sala do apartamento do casal de grandes amigos, Franklin e Marcele, pude observar algumas vezes a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, ou, simplesmente, Igreja da Glória, localizada no bairro carioca de mesmo nome.

Foram eles que me levaram lá pela primeira vez. Inclusive, Marcele já compartilhou inúmeros registros fotográficos dela: na chuva, no sol e à noite. Cada um mais belo que o outro.

E é com essa visão que eles esperam o primogênito, que, em breve, também porá os olhos nela.

É um privilégio poder contemplá-la diariamente, essa que é considerada umas das joias da arquitetura colonial barroca, vista por quem percorre todo o aterro do Flamengo.

Embora pareça uma igreja sem tanta expressão para os desavisados, inaugurada em 1730, foi a igreja frequentada pela família imperial quando de sua chegada em 1808, após a famosa fuga da corte portuguesa, temendo Napoleão Bonaparte.

Foi lá que o imperador Dom Pedro I e sua consorte, Dona Leopoldina, ávidos frequentadores da então igrejinha, batizaram não apenas a primogênita do casal, a princesa Maria da Glória – futura Rainha Maria II de Portugal-, no ano de 1819, como também foram batizados Dom Pedro II e a Princesa Isabel, que aboliu a escravidão no Brasil, e era esposa do famoso Conde d’Eu.

Como todo bom devoto, no ano de 1839, Dom Pedro II – talvez como gratidão por tantas glórias alcançadas -, outorgou à irmandade da igreja o título Imperial Irmandade da Nossa Senhora da Glória do Outeiro, o qual ostenta até a presente data, embora nenhum imperador ou família real ali mais faça suas orações, como nos áureos tempos.

Curiosamente, embora faça um certo tempo que não passe próximo da Igreja da Glória, a história de um outro casal também convergiu para ela.

Recentemente tive a oportunidade de conhecer a história do casal franco-brasileiro, Maria Helena e Jacques Boulieu, que ao longo da vida formaram um gigantesco acervo de 1200 peças de arte barroca – Notadamente arte sacra produzida nas colônias europeias entre os séculos XVI e XVIII, desde esculturas,  resplendores, instrumentos musicais, a telas -, e que, visando preservá-lo e instigar as pessoas a refletirem sobre a religiosidade, idealizaram o Museu Boulieu, doando todo o seu acervo à Diocese de Mariana no ano de 2014, o qual foi reunido durante décadas, em assim, deixaram-no como legado para amplo e total acesso do público.

Localizado na cidade mineira de Ouro Preto, num casarão totalmente restaurado e modernizado, dividido em várias salas temáticas, com destaque para as salas Brasil Minas Gerais, Brasil Nordeste, América Hispânica e América Latina; foi inaugurado em 14 abril de 2022, e cujo acervo é simplesmente inacreditável. Até quem não tem fé, intimamente, vai agradecer à Deus pelo empenho do casal.

Em sua entrada, antes da escada de acesso às salas, um painel com a foto do casal Boulieu sorrindo, e um breve resumo de sua história, dava as boas-vindas aos visitantes – Ao final da visita, soube que Jacques Boulieu falecera há uns quatro meses. Entretanto, nada mais havia sobre a história do casal, senão um cravo- instrumento tocado por Helena- e uma pequena placa com a certidão de casamento deles, realizado no final dos anos 1950.

Duas coisas me chamaram a atenção naquela certidão de casamento: um dos padrinhos foi o presidente Juscelino Kubitschek, e a cerimônia foi realizada na Igreja da Glória.

Apesar de, talvez, para a maioria das pessoas, esse detalhe passe despercebido, percebi que aquela igreja de estilo barroco, despretensiosamente erguida naquele longínquo outeiro, foi o palco de encontro não apenas dos fiéis, como também de figuras históricas. Cada uma em seu tempo e sua importância.

Entretanto, as que destaco, coincidentemente, são todas amantes das artes e, aparentemente, de fé.

Decerto que arte sacra tem seu lugar em qualquer lugar que a encontremos. Porém, necessariamente, não tem correlação com a fé individual, uma vez que é muito comum vermos as pessoas desconhecerem totalmente o significado de certas representações religiosas e, terem, de fato, fé.

Até porque, normalmente, rezamos de olhos fechados.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 13/10/2024 - 07:34h

O panelão da cultura

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa do Brasil Escola UOL

Arte ilustrativa do Brasil Escola UOL

Por estes dias, referi-me aqui à denominada “cultura de massa”, anotando que os gostos, hábitos, valores, ideias e atitudes – o agir do homem moderno – estavam cada vez mais condicionados pelos meios de comunicação de grande escala. Desde a era do rádio, do cinema e da TV, e hoje em tudo amplificado pelo fenômeno, ainda mais agudo e capilarizado, da Internet.

A ação crescente desses meios de comunicação – sobretudo a TV e a Internet – criam um certo tipo de “cultura”, dita “de massa”, homogênea e invariavelmente de baixa qualidade, padronizando os gostos, preferências, interesses, motivações, ideias e valores do homem-massa contemporâneo.

E essa cultura, de há muito transformada em mercadoria, mexe com muito – muitíssimo mesmo – dinheiro. Ela tem, para além da sua relevância como “coisa do espírito”, altíssimo “valor”.

De fato, Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), reproduzindo o para lá de controverso Karl Marx (1818-1883), já nos alertava para a gritante transformação dos produtos da cultura em mercadorias:

“Houve um tempo, como na Idade Média, em que não se trocava senão o supérfluo, o excedente da produção sobre o consumo. Houve também um tempo em que não somente o supérfluo, mas todos os produtos, toda a existência industrial, passaram ao comércio, em que a produção inteira dependia da troca. (…) Veio, finalmente, um tempo em que tudo o que os homens tinham encarado como inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico, e podia ser alienado. Este foi o tempo em que as próprias coisas que, até então, eram transmitidas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. – em que tudo enfim passou ao comércio. Este foi o tempo da corrupção geral, da venialidade universal ou, para falar em termos de economia política, o tempo em que tudo, moral ou físico, tornando-se valor venal, é levado ao mercado, para ser apreciado no justo valor”.

Pondo de lado o tom panfletário de Marx, parece certo – ou pelo menos é o que diz um outro Nelson, o Rodrigues – que, hoje em dia, “o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”.

Com isso eu chego aonde quero chegar: é possível “comprar” o sucesso na cultura? Partindo do pressuposto da existência de um mínimo existencial de talento, parece mais do que certo que sim. Publicidade/propaganda é muito mais do que muito.

Como diz Nelson Werneck Sodré (favor não confundir os Nelsons), “na medida em que se amplia a área de atividade artística e que suas criações se tornam mercadoria, muda o quadro e, inclusive, a escala de valores. Antes, quando não havia público ou, nele, reduzido que era, preponderava o julgamento dos oficiais do mesmo ofício, dos confrades, a consagração, pelo menos a curto prazo, ficava na dependência dos especialistas – eram os escritores que julgavam os escritores, por exemplo – e isso conferia uma nota provinciana ao meio, assemelhava-se ao arraial interiorano, permitindo a influência das igrejinhas; só estas poderiam consagrar. O aparecimento e o crescimento do público, que passa a ser árbitro do sucesso, transfere esse poder de consagração àqueles que estão fora da atividade artística e não sofrem as suas injunções e competições. Na medida em que as criações artísticas se transformam em mercadoria e que, portanto, há consumidores para ela, são estes os juízes de seu valor. Com o desenvolvimento desse mercado, surge a possibilidade de forjar falsos valores, à base da publicidade, aquilo que a chamada ‘cultura de massa’ pode impingir. Assim, em seu desenvolvimento dialético, o positivo se torna negativo, o avanço se transforma em recuo”.

De toda sorte, talvez esse panelão da cultura seja melhor do que as panelinhas/igrejinhas de outrora, referidas por um dos Nelsons, que, embora menos poderosas, ainda hoje subsistem tanto nas artes como nos esportes. Pensando bem, deve ser por isso que eu não estou conseguindo apresentar devidamente, na pelada da AABB, o meu futebol clássico e eficiente.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 13/10/2024 - 05:30h

Conversa com as paredes

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa do Adobe Stock

Arte ilustrativa do Adobe Stock

Falo de vez em quando com as paredes. Os doutores Roncalli Cunha e Dirceu Lopes, ambos alienistas, talvez se perturbem com isso. Não precisa. No momento em que tal “conversação” acontece, embora eu tenha por resposta apenas o silêncio, estou de posse de minhas faculdades mentais. São ensejos em que não me encontro irritado, deprimido ou ansioso. Sinto-me em paz e sem uma excruciante enxaqueca, enfermidade esta que, às vezes, se arrasta ao longo de vários dias.

Embora não digam nada, estou certo de que as paredes me ouvem, sabem dos meus solilóquios, testemunham as minhas ruminações e queixumes, sobretudo nas noites embaixo deste teto que parece as escamas de um peixe de cerâmica. Apesar do silêncio absoluto que me devotam, repito, estou satisfeito. Pois não é todo mundo que consegue estabelecer e usufruir desse tipo de confidência.

Deitado em uma rede aqui na sala, enquanto os remédios não fazem efeito e o sono não vem, digo umas breves palavras como se fosse para sentir que continuo neste mundo. É mais ou menos como testar um microfone, reconhecer o timbre da nossa própria voz. Assim, entre outros pontos, podemos constatar que o coração bate, que o sangue corre nas veias. “Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”, declarou o escritor irlandês Oscar Wilde.

Agora, todavia, esta minha mensagem ultrapassa os limites desta casa. Isto pelo simples fato de que ora compartilho com vocês esses instantes de introspecção, retraimento e quietude. Penso, enfim, nos amigos e até mesmo nas pessoas que sequer conheço e que possivelmente vão ler esta crônica dominical.

Ergo a vista, imagino ter escutado um ranger de dobradiças. Não é nada. Nenhum barulho ou vulto. Estou, como sempre, sozinho a esta hora da manhã. O cheiro do café que fiz há poucos minutos já impregnou a casa toda. As paredes seguem com o mutismo de costume. Sei, entretanto, que me dão ouvidos.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 13/10/2024 - 03:38h

Os gritos

Por Bruno Ernesto

Tela O Grito, de Edvard Munch. Galeria Nacional Noruega, Oslo (Foto: do autor da crônica)

Tela O Grito, de Edvard Munch. Galeria Nacional Noruega, Oslo (Foto: do autor da crônica)

Para gostar de arte, necessariamente, não precisamos entender de arte. Gostamos e admiramos naturalmente e, dependendo do nosso estado emocional, espiritual e do local onde nos deparamos com ela, não há limite para contemplá-la. Arte é tudo que envolve a criação humana voltada para ser admirado, quer seja através dos sons, imagens ou sensorial.

Sempre gostei e admirei todo tipo de arte; quer seja no e do Brasil ou fora dele. Aliás, arte não tem fronteira. Pode haver barreira.

Numa dessas viagens, fui visitar meu amigo Rasmus Ofstad, em Oslo, já imaginando poder visitar os museus da capital e, quem sabe, poder ficar em frente à famosa O Grito, de Edvard Munch.

Naquela época, não tínhamos certeza em qual museu ou galeria ela estava, de modo que visitamos várias durante o dia inteiro até que, soubemos que ela estava exposta na Galeria Nacional da Noruega, localizada no centro da capital, Oslo.

Como já se aproximava o final do dia, corremos para lá, na esperança de poder ingressar na galeria antes de encerrado o expediente; e, por ser o meu último dia na cidade, não podia desperdiçar aquela oportunidade.

No que tange ao estacionamento, uma coisa você tenha certeza: os centros das grandes cidades são iguais em qualquer parte do mundo. A única diferença é o valor que cobram pelo estacionamento – se existir -, ou o valor da multa que lhe será aplicada, se você não estacionar no local adequado. No nosso caso, só restou correr o risco de sermos multados. Eu não, meu amigo.

Sabendo que queria muito ver a tela de Munch, ele apenas me disse para correr. Deixamos o carro estacionado praticamente no meio da rua e corremos para lá que, por sorte, ainda estava aberta e conseguimos entrar.

A tela estava no terceiro andar da galeria, de modo que fui passando apressadamente por várias obras de arte e, ainda que rapidamente, pude observar belíssimas telas, sem, contudo, poder parar para contemplá-las e fazer alguns registros – simplesmente não havia tempo -, até que pude avistá-la pendurada numa parede azul escuro, com um grande rodapé de madeira branco.

Exceto o segurança postado em frente à tela, que estava protegida por um espesso vidro, o andar estava vazio. Melancolicamente vazio.

Gentilmente ele permitiu que eu fizesse o registro – sem flash – ao lado da famosa tela e, após, fiquei por alguns minutos apenas observando. Cada traço. Cada pincelada. As cores.

Segundo os entendedores de obras artes, a tela expressionista simboliza algo muito comum a todos nós; pelo menos em algum momento de nossas vidas: a solidão, a melancolia, a ansiedade e o medo. E, nitidamente, devemos somar o desespero.

Depois disso, retornamos em silêncio para o carro que, por sorte, nem foi multado nem rebocado, e fomos tomar um saboroso e tradicional suco de maçã.

Talvez todos nós tenhamos um tanto de Edvard Munch latente. Quem sabe?

Desde então, fico a imaginar quantos Os Gritos poderiam ter surgido. Inclusive os meus.

Bruno Ernesto é Advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
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terça-feira - 08/10/2024 - 06:48h
Crônica

Bateu saudade!

Professor Carlos Escóssia e Caby da Costa Lima: amizade (Foto: Relembrando Mossoró/Sem autoria identificada)

Professor Carlos Escóssia e Caby da Costa Lima: amizade (Foto: Relembrando Mossoró/Sem autoria identificada)

É, sou desses: bateu saudades e preciso logo irradiar esse sentimento. Uma foto e um monte de histórias, várias delas que serviriam para roteiros de um sitcom (comédia de situação).

Professor Carlos Escóssia, meu xará vascaíno; o “Camaradinha” Caby da Costa Lima, radialista e tricolor como eu.

Os dois com a mesma característica, não obstante tantas diferenças: sabiam e exercitavam o valor inestimável da amizade.

Quem disse que vocês se foram? Men-ti-ra.

Amigos são assim mesmo: desaparecem, somem por qualquer razão, mas não deixam nunca de nos pertencer.

Por isso a gente lembra.

Bateu saudade.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 06/10/2024 - 09:28h

Minha aposta

Por Marcelo Alves

Vício nos jogos está desviando finalidade do Bolsa Família (Foto: Joédsom Alves)

Vício das “bets” (Foto: Joédsom Alves)

Por esses dias, muito se falou da “epidemia das bets” no Brasil. Não precisava ser dos mais atentos para notar que havia/há algo de podre no reino… do Brasil. São tantas bets na TV e patrocinando times de futebol que já não sabemos mais quem é quem. Jogadores estão envolvidos em apostas. “Influenciadores” e artistas metidos em lavagem de dinheiro e outros crimes. Gente presa. Tem um tal do “Tigrinho”. E, claro, amigos ou conhecidos perdendo o que têm; outros, o que nem têm. A epidemia, para a qual ainda não temos a vacina, adoeceu/viciou muitíssima gente.

Os números, que colhi de uma matéria da Deutsche Welle, são estarrecedores: “Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), em parceria com a AGP Pesquisas, mostrou que 63% de quem aposta no país teve parte da renda comprometida com as bets. Outros 19% pararam de fazer compras no mercado e 11% não gastaram com saúde e medicamentos. Esses dados refletem uma tendência preocupante, evidenciada ainda mais por um relatório divulgado pelo Banco Central nesta terça-feira (24/09), que revelou que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em sites de apostas esportivas, somente no mês de agosto. O valor equivale a 21,2% dos recursos distribuídos pelo programa no mesmo mês. Ainda segundo o banco, 24 milhões de brasileiros fizeram ao menos uma transferência deste tipo no país desde janeiro. A maioria dos apostadores tem entre 20 e 30 anos e gasta cerca de R$ 100 por aposta. Este valor sobe de acordo com a idade. Brasileiros acima de 60 anos gastam uma média de R$ 3 mil reais em bets”.

Quando gozava dos meus 20 anos, eu ainda arriscava apostas no futebol. ABC x América. Presencialmente, no estádio. Coisa pouca e o meu ABC não decepcionava. Mas essa onda não durou muito. Por temperamento sou econômico. Para além disso, um livro teve forte influência em mim: “O jogador” (1867) de Dostoiévski (1821-1881). Escrito para que o autor pagasse suas próprias dívidas de jogo, é uma pequena obra-prima, parcialmente autobiográfico, de quem entendia bem – ou mal, a depender do ângulo – de jogos e apostas.

A trama de “O jogador” gira em torno de Alexei Ivanovich, que, apaixonado (as paixões…), é introduzido no jogo pela manipuladora Polina Alexandrovna. Alexei torna-se “profissional”. Joga para sobreviver. E para “matar” a compulsão. A desgraça chega. No final, Alexei tem uma chance de redenção. Mas esse fim só retrata a loucura do vício: “Oh! Foi um notável exemplo de resolução: tinha perdido tudo, tudo… Saio do casino, olho… um florim repousava ainda na algibeira do meu colete: Ah! Ainda tenho com que jantar!, disse eu, mas depois de ter andado uns cem passos, mudei de opinião e voltei atrás. Pus esse florim no manque (dessa vez foi no manque) e, realmente, experimenta-se uma sensação especial quando, sozinho, num país estrangeiro, longe da pátria, dos amigos, não sabendo o que se vai comer nesse mesmo dia, se arrisca o último florim, o último, o último! Ganhei e, vinte minutos mais tarde, saí do casino com cento e setenta florins no bolso. É um fato! Eis o que pode por vezes significar o último florim! E se tivesse deixado ir abaixo, se não tivesse tido a coragem de me decidir?… Amanhã, amanhã, tudo estará acabado!…”.

Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), já lembrava que os gostos, hábitos, valores, ideias e atitudes – o agir do homem moderno – estavam cada vez mais condicionados pelos meios de comunicação de massa. Se então vivíamos a era do rádio, do cinema e da TV, hoje somamos o fenômeno, mais agudo, da Internet. A ação crescente desses meios de comunicação de massa – sobretudo a TV e a Internet – criam um certo tipo de “cultura”, a “cultura de massa”, cujas “características essenciais seriam a homogeneidade, a baixa qualidade e a padronização de gostos, ideias, preferências, motivações, interesses e valores”.

Dostoiévski é um autor cult. Dizer que é “pouco lido” no Brasil seria quase um eufemismo. Não faz parte da nossa “cultura das massas”. Mas procuro manter minha aposta nos grandes livros. Na influência destes sobre o público. É fato que o lançamento, em 1784, de “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe (1749-1832), provocou uma onda de suicídios na Europa. Longe de mim desejar a repetição de atos desesperadores. Pensava num relançamento “bombástico” de “O jogador” como fomentador da consciência dos malefícios das apostas/jogos. É muito arriscado?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 06/10/2024 - 08:24h

Vem olhar a fogueira comigo

Por Bruno Ernesto

Vincent Van Gogh - Camponês queimando ervas daninhas- 1883

Vincent Van Gogh – Camponês queimando ervas
daninhas- 1883 (Reprodução)

Para que tanta pressa, se irão retardar o seu cortejo para poder lhe dar o último adeus ?

Como é interessante perceber que a busca da felicidade não depende exclusivamente de nós, como os autointitulados gurus da felicidade tanto pregam.

Não soa coerente com o que tantas pessoas consideram válido?

Perceba que se a receita infalível deles de fato funcionasse, haveria necessidade de tantos livros de autoajuda ou novas edições de tais receitas miraculosas?

Afinal, a felicidade plena muda com o tempo?

Evidente que ao longo da vida mudamos de opinião, temos novos desejos, novas metas de vida, nem mesmo as nossas amizades são perenes ou perpétuas. Vivemos de forma cíclica, de maneira que é mais que normal que mudemos de opinião e de metas.

Aliás, as metas não são feitas necessariamente para serem cumpridas.

Diria que, na maioria das vezes, são descumpridas de forma planejada. Não há nada de anormal, errado ou frustrante nisso.

Quem vive exclusivamente de metas são as equipes econômicas. E, veja só como anda a economia.

Veja que o fundamento invocado por tais gurus da felicidade transfere toda a infelicidade – ou não alcance da felicidade plena – para o indivíduo, como se fosse culpa exclusiva dos seus seguidores.

Ele terceiriza a infelicidade e a culpa do insucesso para o outro, como se a sua receita de felicidade fosse infalível.

Para eles, se você não é feliz e plenamente realizado, você é o único culpado por esse fracasso, pois não se esforçou o suficiente para alcançá-la e isso é terrível para os desavisados. Tem muita gente que acredita mais nisso que na própria razão.

É importante que tenhamos em mente que há vários tipos de felicidades e, duas delas, são altamente consideradas diariamente por nó, muitas vezes sem nem mesmo percebermos.

A felicidade eudaimônica, está relacionada ao bem estar com com base no esforço, ocupação ou trabalho, mesmo em situações nas quais podemos descansar e não fazer nada, porém optamos por mantermos ocupados, uma vez que esse tipo de felicidade vem da percepção de que temos algum potencial para a vida, ou mesmo um propósito que nos dá uma sensação de orgulho por concluir uma determinada tarefa, por mais simples que seja.

Essa é a razão pela qual tantas pessoas relutam em não deixar de trabalhar mesmo após se aposentar ou mantêm-se ocupadas durante as férias ou num período de descanso.

Já na felicidade hedônica, mantemo-nos com pensamento relativamente positivos e alegres, e o ócio é muito bem vindo para se alcançar a felicidade. Ainda que em certos momentos retomemos alguma atividade ou ocupação.

Entretanto, a diferença nodal entre elas é que a felicidade eudaimônica é a felicidade duradoura; enquanto a felicidade hedônica é a felicidade imediata.

O que se tem constatado, entretanto, é que a felicidade plena tem mais ligação com a felicidade coletiva.

Uma pergunta simples pode demonstrar o quão você se esforça e se importa com pequenos gestos e atitudes: por acaso, você é colaborativo no seu dia a dia?

Ao estacionar o seu veículo, eventualmente, você leva em consideração o outro motorista?

Estaciona trancando outro veículo ou uma garagem? A propósito, ocupa uma vaga exclusiva para idosos ou duas vagas de estacionamento?

Sempre que possível, gosto de relembrar o que Guimarães Rosa dizia sobre a felicidade: “Felicidade, só em raros momentos de distração.”

Se considerarmos o conceito de felicidade plena como sendo aquela que considera apenas as grandes vitórias, os grandes momentos de um indivíduo, tente enumerar quantas vezes você, de fato, se sentiu feliz com essas grandes conquistas.

Aliás, você tem alguma meta inalcançável?

Talvez você nem se lembre quando foi a última vez que lhe agradeceram por algo que você despretensiosamente fez de bom, gentil e, genuinamente, para colaborar com a coletividade ou para um desconhecido.

O que se tem visto com seriedade, é que a felicidade repousa mais na colaboração de todos, num movimento convergente, nas pequenas coisas do dia a dia, com atitudes voltadas para o interesse coletivo. Ou seja,  para a felicidade coletiva.

Se você observar bem, os países com alto índice de desenvolvimento humano não são fortes apenas no campo econômico, mas também nos aspectos de desenvolvimento social e político.

Na Suíça, por exemplo, praticamente todos os meses há referendos e consultas à população para que decidam sobre todos os tipos de questões e, embora não seja uma exclusividade dos suíços, é necessário destacar que, se apenas a economia suíça fosse suficiente para proporcionar a felicidade plena, os demais aspectos pouco importariam, de fora que são as pequenas coisas que refletem e direcionam todo o nosso bem estar e conduz à plena felicidade. Pelo menos possibilita que seja tangível.

Um dos muitos exemplos disso foi o que Vincent van Gogh escreveu ao seu irmão Theodoro van Gogh, quando, em uma de suas muitas cartas, tentou convencê-lo a ir para a província holandesa de Drenthe e também tornar-se um pintor, e não apenas encorajá-lo, como fez a vida inteira, embora fosse o irmão mais novo de Vincent.

Se você tiver a oportunidade de visitar o museu Van Gogh em Amsterdã, verá inúmeras cartas trocadas entre os irmãos van Gogh, compartilhando não apenas as agruras, mas também o incentivo e, sobretudo, o raros e  pequenos momentos de felicidade, os quais foram determinantes para que Vincent van Gogh seguisse como pintor.

Embora em vida Vincent van Gogh tenha sido considerado um louco e fracassado e, a despeito de toda polêmica que cerca a sua morte, podemos ver a sua felicidade em cada uma de suas telas com suas cores vibrantes: pequenas e constantes alegrias.

“Vamos lá, velho amigo, vem pintar comigo na baía, no campo de batatas. Vem caminhar comigo atrás do arado do pastor. Vem olhar a fogueira comigo, deixar soprar através de ti a tempestade que sopra através da baía. Fuja.” (Carta de Vincent a Theo van Gogh).

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 06/10/2024 - 06:38h

Vamos às urnas

Por Odemirton Filho

Urnas eletrônicas também passarão por processo de auditagem (Foto: TRE/RN)

Urnas eletrônicas prontas para processo de auditagem (Foto: TRE/RN/2022)

Neste período de campanha eleitoral, apesar de gostar de conversar sobre política e eleições, praticamente não toquei no assunto, no máximo, escrevi algum texto sobre normas de Direito Eleitoral, abordando as consequências jurídicas de algum ilícito praticado no decorrer do pleito.

Todavia, aqui ou acolá, alguém puxava o assunto. Dia desses, lá pelas bandas da cidade de Grossos, um homem simples, tratador de cavalos, disse-me:

– Oficial, eles pensam que somos bestas. Toda campanha é a mesma conversa fiada, tô desesperançado.

Outro dia, um flanelinha que trabalha ali pelo centro de Mossoró, me falou:

– Toda eleição eu aproveito pra ganhar alguma coisa dessa cambada, já que não fazem nada quando ganham a eleição.

Em ambos os diálogos, na realidade um monólogo, achei por bem guardar o silêncio. Contudo, fiquei a refletir sobre o que me disseram. Estariam mentindo?

O fato é que há tempos a desesperança tomou conta do cidadão em relação aos políticos. Os eleitores estão cansados das promessas requentadas e da corrupção que há tempos assola o país. É claro que existem exceções, alguns bons políticos até pretendem melhorar a vida da sociedade, no entanto, ao serem eleitos, pouco conseguem realizar, pois o sistema é bruto.

Alguém já disse que em política, até a raiva é combinada. Os adversários de ontem, hoje, estão juntos e misturados. Ideologia? Besteira besta! O negócio é alçar ao poder. E fazem os seus conchavos sem um pingo de constrangimento, sejam de vieses à direita ou à esquerda.

De um lado, alguns candidatos que sabem que descumprirão suas promessas, e estão doidos para meter a mão na coisa pública. De outro, aquele eleitor que cobra honestidade do político, mas negocia o seu voto na primeira oportunidade.

De toda forma, hoje teremos a oportunidade de exercer mais uma vez, por meio do voto, o direito ao sufrágio, escolhendo um candidato para nos representar e tentar mudar essa realidade. Embora muitos eleitores estejam desesperançados, vamos às urnas, pois a “democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais”.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica / Política
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domingo - 06/10/2024 - 03:00h

Briga de foice no escuro

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa do Adobe Stock

Arte ilustrativa do Adobe Stock

Tenho consciência de que lá fora os mossoroenses estão ouriçados por conta das eleições municipais. Aqui, porém, curto a minha solidão, fechado comigo mesmo. Só vou deixar este aconchego para depositar meu voto na urna no fim da tarde, perto do encerramento das votações. É, estou sem ânimo. Nem um pouco a fim de receber na moleira esse poderoso sol de onze horas da manhã. Ficarei aqui no meu tugúrio, como diria o poeta Jomar Rêgo, último dos parnasianos desta urbe.

No meu íntimo, embora a cidade se encontre em estado de ebulição, quase fervendo, este não passa de mais um dia ordinário. O pleito eleitoral não me contagia. É claro que já fiz a minha escolha, sei em quais candidatos, segundo minha preferência e senso de coletividade, devo votar. Ressalto que a escolha, no entanto, não foi tão simples nem fácil. É tarefa dificultosa escolher em quem votar em meio a tantos nomes ruins, oportunistas, arrivistas e bem pouco confiáveis.

De qualquer modo, correndo o risco de eleger os mesmos ou novos picaretas, admito que é preciso exercer esse ato democrático. Sou contra votos brancos e nulos. Ainda que o número dos bons e bem-intencionados indivíduos que disputam nossa confiança seja quase imperceptível a olho nu, penso que existe gente boa nesse meio. Acho que, até certo ponto, é possível separarmos o joio do trio.

Ouço o vaivém dos veículos e o buzinaço que produzem. São apoiadores de candidatos de toda espécie. Muitos podem ser diferenciados pela cor das roupas que vestem. Cada partido, sobretudo em se tratando daqueles que almejam a mais cobiçada cadeira do Palácio da Resistência, tem suas cores definidas. Ao todo são quatro candidatos a prefeito de Mossoró. A contenda destes (como diz o conhecido provérbio) até parece uma briga de foice no escuro. Já do lado daqueles que almejam um assento na Câmara de Vereadores há postulantes para todos os gostos e desgostos.

É isto. Não tenho muito o que dizer sobre as eleições na terra de Santa Luzia. Torço apenas que o estrago (após revelados os vencedores) não represente uma tragédia no que se refere aos “representantes do povo”. Tomara que não. Faz tempo que este município está precisando de uma faxina bem-feita.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 29/09/2024 - 12:20h

Père Lachaise

Por Honório de Medeiros

Père Lachaise em foto do autor da crônica (Honório de Medeiros)

Père Lachaise em foto do autor da crônica (Honório de Medeiros)

Père Lachaise. Tarde de frio, vento, e neblina. Tudo cinza, como convém a um cemitério. Ninguém à vista, exceto duas mulheres que se dirigem a mim e me perguntam se lhes posso informar onde está sepultado Azzis, “Le philosophe Azzis”. “Não, desculpem-me, não sei”. Elas se vão. Cochicham. Admiro-lhes o talhe elegante, a beleza madura, até mesmo os guarda-chuvas.

Tento decifrar o mapa do cemitério para ir em marcha batida na busca dos meus mortos queridos. Caminho. É um alumbramento. Em cada canto, história. Túmulos de grandes homens ou mulheres disputam espaço com anônimos. Enterneço-me com a lápide pousada no chão e rodeada de flores murchas. Foi recente o sepultamento.

No canto, solitário, um ursinho de pelúcia cumpre a dura tarefa de velar o morto e render-lhe as homenagens que alguém lhe destinou. Fotografo.

Sigo em frente. Ofereço as flores que carrego comigo a Honoré de Balzac. Rezo, não, converso com ele. Pergunto-lhe por Alexandre Dumas e lhe digo de minhas manhãs, tardes e noites, ainda menino, quase adolescente, preenchidas pelo gênio de cada um deles.

Mais além, rendo minhas homenagens a Oscar Wilde, mas me assusto com alguém que surge de repente, como uma aparição, ao meu lado, e cruzando o braço esquerdo sobre o peito, eleva o direito à face, esconde-a com a mão e põe-se em um isolamento absoluto em relação ao resto do mundo.

A tarde cai lentamente. Anoitece. Tenho que ir, embora não deseje. O instante é mágico. Olho e não vejo ninguém.

Sento em um banco às margens de uma das vias principais e me lanço em uma divagação sem nexo, constituída de fragmentos do presente e do passado: é plena madrugada, estou deitado de costas olhando para a torre da igreja do cemitério e para as estrelas logo acima; agora é a Mossoró da minha adolescência e infância, a Igreja é a de São Vicente, meus amigos de então conversam ao meu lado, mas ninguém dá por mim. Sou adolescente e adulto. Angústia.

Levanto-me e vou embora. A chuva molha meu rosto. Cumprimento a guarda. Chego à rua. A Paris movimentada vem ao meu encontro. Eu sigo mecanicamente, enquanto tento guardar as cores, os cheiros, as sensações, os fatos daquela minha caminhada.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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domingo - 29/09/2024 - 11:46h

As madeleines

Por Marcelo Alves

Madeleines (Foto ilustrativa do Verbo Comer)

Madeleines (Foto ilustrativa do Verbo Comer)

A madeleine – bolinho basicamente feito de farinha, manteiga, ovos e açúcar – é uma das delícias da França. Ela restou famosa, para os amantes das letras, por sua ligação com o grande Marcel Proust (1871-1922), que, escrevendo “Em busca do tempo perdido”, faz seu narrador ser invadido por graciosas memórias após provar um chá com as madeleines oferecidas pela mãe:

“(…) no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal”.

A partir daí “la Madeleine de Proust”, como registra a revista Deguste (numa já antiga edição de 19 de abril de 2017), “se tornou uma expressão da língua francesa que se refere à memória involuntária, que acontece quando um som, cheiro ou sabor faz com que uma pessoa se lembre de algo, sem nenhum esforço adicional. A expressão, portanto, traz à tona o poder da memória inconsciente e como ela chega, de repente, de forma forte e irracional”.

Acredito, na mesma linha de Steven Pinker (em “Como a mente funciona”, Companhia da Letras, 1998), no “colorido emocional da experiência. Nós não apenas registramos os eventos, mas os registramos como agradáveis ou dolorosos”. E que todos nós, vez ou outra, de surpresa, topamos com as nossas “madeleines”, essas “memórias involuntárias” de um passado remoto – “fragmentos preciosos” se agradáveis –, que vêm espontaneamente à mente a partir das ocorrências cotidianas mais comuns. Não importa que sentido nos faça viajar no tempo/memória: pode ser o sabor do pedacinho de bolo de Proust, o cheiro infantil inconscientemente jamais esquecido ou o som de um amor serenamente perdido.

Eu mesmo relatei, por esses dias, o achado, em Paris, do livro “Les timbres: guide pratique du collectionneur” (Editions Atlas, 1984): com imagens/fotografias de selos em gostosíssima fartura, ele funcionou para mim como uma “madeleine”, em busca de um tempo em que, menino curioso, sonhava e aprendia com os amantes dos selos, filatelistas do mundo e da nossa “Cidade do Sol”.

Lições aprendidas com Elmo Pignataro, o nosso maior colecionador, na sua casa da Ponciano Barbosa, rua sem saída que ia dar na comunidade das irmãs Doroteias do inesquecível Colégio Imaculada Conceição/CIC. As aventuras na rua Seridó de Mussolini Fernandes, durante décadas o nosso maior comerciante de selos. As visitas à casa da Nascimento de Castro de Rosaldo Aguiar, presidente do nosso Clube Filatélico e também pai de amigos de infância. As idas quase semanais aos Correios da Ribeira, cuja “agência filatélica” o saudoso Expedito cuidou por tantos anos, para a aquisição das mais recentes emissões comemorativas brasileiras.

De toda sorte, as “madeleines de Proust” são deveras irracionais. Bem estranhas até. Eu mesmo tenho uma, aliás recorrente, que posso classificar como “esquisitíssima”. O cheiro de estrume (grosso modo, “cocô de vaca”), odor em regra detestado, invariavelmente provoca em mim, de forma involuntária, uma sensação/sentimento muito agradável. Uma sensação de placidez, segurança ou mesmo gostosa saudade, que é complicado para definir, mas não é difícil de relacionar. Associo a uma época em que, ainda menino, ia – na verdade, íamos todos, meus pais, meus tios e primos, nossos amigos de outrora – à Fazendo Paraíso do meu pai. O curral, o leite cru, o cavalo Gugaga, a montaria nas ovelhas, o banho de tanque – num tempo em que todos que eu conhecia eram vivos – era tudo que o menino de então poderia desejar.

Esse cheiro doce de estrume, que me leva de volta à Fazenda Paraíso, semelhante à “Madeleine de Proust”, por um hiato torna-me “indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade”. Faz-me desacreditar que somos todos medíocres, contingentes e mortais.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 29/09/2024 - 10:30h

Departures

Por Bruno Ernesto

Foto do autor da crônica (Bruno Ernesto)

Foto do autor da crônica (Bruno Ernesto)

No exato momento em que escrevi este texto, estava tomando um café em Congonhas, aguardando a boa vontade da companhia aérea para seguir viagem com destino a Belo Horizonte.

E, registre-se: como é bom constatar que as companhias aéreas continuam, ainda que mínima e timidamente, temente a Deus.

O vale que me deram pelo atraso – desculpe, já esgotei minha cota de estrangeirismo por hoje e não queria escrever voucher – foi suficiente para cumprir o direito fundamental e subjetivo do mínimo existencial.

Desde que você confronte a companhia, nada de má vontade lhe será fornecido.

É como diz o ditado: quem tem boca vaia Roma. Se bem que não queria necessariamente vaiar, porém queria ir mesmo, como sempre dizem.

Como é interessante o sobressalto do espírito republicano dos passageiros ali reunidos, circundando o balcão da companhia como se estivessem em plena Ágora. Cada qual com seus argumentos convergentes. E tem gente que ainda diz que não gosta de unanimidade.

Nada que o poder de persuasão incisiva de uma turba não resolva de forma caótica, quando a indignação de uma das partes se sobreponha à boa vontade de não resolver da outra.

É preciso que exercitemos a impaciência sempre que possível.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 29/09/2024 - 09:48h

A vida é boa

Por Odemirton Filho

Machado de Assis: autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Foto: Reprodução)

Machado de Assis: autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Foto: Reprodução)

– Vamos, Seu Machado, que é isso? Coragem! – dissera o Barão de Rio Branco, alguns dias antes. Não adiantou.

Na madrugada insone do dia 29 de setembro de 1908 faleceu o bruxo do Cosme Velho, após uma dolorida enfermidade. Deixou-nos o nosso maior escritor, legando-nos uma obra incomensurável, composta por uma vasta produção nos mais variados gêneros literários, romances, mais de seiscentos contos, além de inúmeras crônicas e peças de teatro.

Antes de falecer, segundo alguns, Joaquim Maria Machado de Assis, no seu leito de morte, sentenciou: “a vida é boa”. Não sei se é verdade; e se for, se ele proferiu a frase com sua contumaz ironia. O que sei é que o autor de Ressureição (1872), A mão e a Luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Casa Velha (1885), Quincas Borbas (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908) é imortal.

Eu li, reli e releio Machado. Cabe anotar, que as fases de sua obra se dividem em duas, romantismo e realismo.

O fato é que fiquei a refletir sobre a referida frase. O que estamos fazendo de nossas vidas para torná-la boa? Vivemos o nosso dia a dia numa correria danada. Gastamos nossa saúde na juventude para tentar recuperá-la na velhice. Será que estamos a apreciar o singelo, como a beleza do mar e o agradável momento junto a familiares queridos e amigos? Ou estamos vivendo somente para trabalhar e pagar contas?

“A vida é um direito, a mocidade outro; perturbá-los é quase um crime. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito”, disse Machado. Decerto, precisamos construir momentos felizes que façam a vida valer a pena.

Hoje, quando eu vejo algumas pessoas idosas, lembro como eram na mocidade, agora, mostram-se frágeis, vulneráveis, precisando da ajuda de terceiros para realizar as tarefas mais simples. Será que viveram ou somente passaram pela vida? Cada um de nós tem a resposta.

“A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente”. Não esqueçamos que existem milhões de pessoas que sofrem mundo afora pelos mais variados motivos, como a fome, a miséria, as doenças e as guerras. Assim, creio eu, depende da realidade vivida e do subjetivismo de cada um afirmar ou não que a vida é boa.

Bom, mas voltemos a Machado de Assis. O seu corpo foi velado na Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual foi um dos fundadores, tendo como patrono o seu amigo José de Alencar. No discurso ao pé do seu ataúde, Rui Barbosa afirmou: “Era sua alma um vaso de amenidade e melancolia”.

O bruxo do Cosme Velho continua vivo; eu sempre o encontro na magia dos seus textos.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 29/09/2024 - 07:38h

Pôr do Sol rosa e a questão ambiental

Por Wendson Medeiros

Foto ilustrativa da Freepik

Foto ilustrativa da Freepik

Depois de Lajes, por volta das 17h15, olho para o retrovisor e vejo um sol de cor rosa, bem definida, diferente de um dia normal. Estou dirigindo, não posso parar para fotografar e deixar vivo esse registro, por mais distante que ficasse a partir da lente de um celular. Peço aos meninos que olhem para trás, para ver o fenômeno. Para que possam apreciar e, quem sabe um dia, lembrar daquele cenário.

Antes de chegar em Lajes, porém, venho achando estranho a cor do céu. Cinza, muito cinzento. De longe, o Pico do Cabugi, imponente e sempre bem visível ao longo de qualquer dia ensolarado, surge meio ofuscado por uma espécie de nevoeiro, mas em um dia sem nuvens e sem chuva. Há algo diferente no ar. E essa tonalidade no céu já vinha se apresentando, também, em Mossoró,  por volta do meio dia, ao longo da semana, quando geralmente saio da Universidade do Estado do RN (UERN) para o almoço e o céu é sempre contemplado.

Ao chegar em Natal, procuro me informar sobre tudo. Leio as notícias e encontro um texto de colegas pesquisadores, replicando o Relatório Anual do Desmatamento (RAD) do Mapbiomas que identifica que o RN foi um dos estados que mais desmatou no Nordeste, com cerca de 1359 hectares somente neste ano. A expansão dos empreendimentos de energia renovável (eólica e fotovoltaica) é tida como uma das responsáveis por esta degradação.

A REGIÃO CENTRAL, onde está Lajes e o Pico do Cabugi, a Serra do Feiticeiro, geopatrimônios do nosso estado e que ainda preservam a história geológica da Terra, se encontram nesta porção do estado do RN. Ventos fortes – sobretudo essa semana, quando o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) publicou alertas de tempestades – solo exposto devido ao desmatamento acelerado e em grandes áreas, pode ser uma das justificativas para aquele cenário cinzento: muita poeira em suspensão na atmosfera dificultando a visibilidade limpa dessa paisagem.

Pouco mais tarde, vejo as noticias sobre as queimadas no Centro Oeste e na Amazônia, que tem se tornado uma constante ao longo de todo esse mês e do ano. São milhares de focos de queimadas lançando gases estufa e material particulado na atmosfera que, transportados pelas correntes de ar, alcançam lugares distantes de sua origem.

O efeito cumulativo e sinérgico destas duas ações (desmatamento e queimadas) combinado, ainda, com a dinâmica atmosférica, além de poder explicar o céu cinzento, pode também explicar o por de sol rosa vivenciado a partir daquela localização. E isso é apenas o que se vê de alguns dos muitos impactos ambientais oriundos de atividades que parecem não estar tão em equilíbrio com o meio ambiente. E o que não se vê, o que deverá causar?

Em tempos de emergência climática e de ocorrências cada vez mais frequentes de desastres ambientais, percebe-se cada vez mais a urgência em se considerar a dinâmica da natureza nos processos de desenvolvimento dos lugares, caso queiramos garantir a sustentabilidade do planeta Terra, nosso único lar, e, por consequência, da vida como a conhecemos hoje, inclusive a humana.

Wendson Medeiros é Geógrafo e Professor da Uern

*Texto escrito em 23 de agosto de 2024

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Categoria(s): Crônica / Política
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domingo - 29/09/2024 - 05:32h

Dois sapateiros

Por Marcos Ferreira

Marcos Ferreira e Ayala Gurgel (Foto: José Arimatéia)

Marcos Ferreira e Ayala Gurgel (Foto: José Arimatéia)

Conhecedor de uma boa parcela do meu histórico de apuros, especialmente no tocante à minha experiência e de meu pai enquanto sapateiros, na última quinta-feira, 26, recebi aqui na Casa Branca da Rua Euclides Deocleciano, 32, o versátil artista Ayala Gurgel. Além de escritor premiado, é um pintor de valioso talento. Fui presenteado por ele com uma arte personalizada, óleo sobre tela no tamanho 40×50, onde vemos um sapateiro desempenhando o seu ofício com um menininho ao lado, imagem dedutível como a de um filho auxiliando o pai na referida atividade.

Nascido em 1971, Ayala é natural do município potiguar de Alexandria. Escritor prolífero, contista, romancista sempre com lastro na temática do sertão, tem vasta formação acadêmica, com passagem por importantes universidades brasileiras. Entre outras especializações e habilitações, é doutor em Políticas Públicas e Filosofia. Ele é professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) desde 2014. Possui experiência no campo da Filosofia, sobretudo em Ética, Bioética, Tanatologia e Saúde Mental. Atualmente, além da literatura e das artes plásticas, desenvolve pesquisas na área de filosofia da linguagem ordinária e teoria da argumentação.

O pai de Ayala, que está com oitenta e três anos, também foi sapateiro. Algumas obras do autor estão expostas na pinacoteca da Ufersa. @ayalagurgel é seu contato no Instagram.

Comecei com apenas dez anos de idade ajudando meu pai, o sapateiro Vicente Ferreira. Primogênito de uma prole de onze irmãos, e com nossas finanças descompensadas pela inflação, era de se esperar que o filho mais velho seguisse o genitor na faina da sapataria. Assim, como na letra do Milton Nascimento, coloquei o pé (as mãos, aliás) na profissão. Eu não tinha carteira assinada, obviamente. Isso só aconteceu no dia primeiro de março de 1986, estando eu com dezesseis anos incompletos. O cargo? Auxiliar de apalazamento; palavra inexistente nos dicionários.

Não havia nesse tempo essa coisa de que criança não pode trabalhar. Eu (assim como os demais) dava expediente das sete às onze e das treze às dezessete e trinta. Não raro, porém, acontecia de estarmos com muitos pedidos e aí todos fazíamos plantão até as nove ou dez da noite. Isso melhorava o salário.

Naquela época, início dos anos oitenta, ainda existiam em Mossoró algumas indústrias e fabriquetas de calçados. Depois, com a pesada concorrência da produção em série das grandes empresas do ramo, as fábricas não suportaram e começaram a falir, a exemplo da Indústria e Comércio de Calçados Arruda Ltda., situada à Rua Adauto Câmara, 154, empresa essa onde trabalhávamos. Devo dizer que possuo uma memória pouco confiável, com a durabilidade dum Sonrisal num copo d’água, como já falei noutra oportunidade, mas certas coisas continuam intactas na minha mente. Consigo lembrar, por exemplo, o cheiro do couro e de alguns tipos de cola.

Ainda analfabeto com onze anos de idade, fui matriculado no Instituto Dom João Costa, onde hoje funciona o Centro de Práticas Múltiplas Dom João Costa. O mingau de milho com coco servido ali na hora da merenda era uma verdadeira delícia. Concluí a quinta séria primária e depois abandonei o colégio, novamente impelido pela necessidade de contribuir para colocar comida em nossa casa.

Alguns anos depois retomei os meus estudos, desta feita na Escola Estadual Hermógenes Nogueira da Costa, no Abolição IV. Ali concluí o sétimo ano. Por essa época as sapatarias já haviam quebrado e eu e meu pai nos tornamos faz-tudo. Eram ocupações de toda sorte que agora não me disponho a narrar. A fome se agravou na casa dos Ferreiras e tivemos, como se diz, que matar um leão a cada dia.

Tudo isso são águas passadas! Hoje, como feliz recordação dos meus anos como sapateiro ao lado do meu pai, tenho essa bela arte em tela produzida pela sensibilidade do meu amigo das letras Ayala Gurgel. Muito obrigado!

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Política
domingo - 22/09/2024 - 11:26h

Critérios

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa da Web

Arte ilustrativa da Web

O meu querido “Aurélio” – e aqui falo do enorme e pesadíssimo “Novo dicionário da língua portuguesa” de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Editora Nova Fronteira, 1986 – define a palavra “critério” como “aquilo que serve de base para comparação, julgamento ou apreciação”. “Devemos ter um critério” – diz-se quase como uma sabença popular imemorial – para que assim possamos, racional e fundamentadamente, deliberar, decidir, escolher, afirmar e até crer.

Para além das decisões/opiniões dadas na minha profissão, eu tenho os meus critérios para as coisas simples da vida. Uma dessas coisitas é o ato/momento/oportunidade de comprar livros quando estou viajando. Devo ou não devo comprar? Escolho esta ou aquela obra? Não quero ser tido, flanando pela Zorópa, xeretando livrarias e sebos, como um “Asno de Buridan” letrado.

Basicamente, procuro por livros que atendam, o máximo possível, a três critérios – ser barato, leve e conter imagens, o que, sabemos, não é fácil de compatibilizar, muito mais nos dias de hoje, num só “espécime” livresco.

Bom, o barato é algo relativo. Mas, com a inflação mundo afora e sobretudo com a desvalorização do nosso real em relação ao dólar e ao euro, está ficando difícil achar esse barato. E tem lugares e lugares. Quando estive em Dubai, por exemplo, os livros eram coisa de três vezes o valor na Europa ou nos EUA. Já na Índia, livros enormes, de filosofia ou teoria geral do direito, em inglês, curiosíssimos, eram quase de “graça”. Era para eu ter enchido uma mala.

O fato é que estabeleço meu teto para cada tipo de livro. Se usado e em formato poche, no máximo 2 euros. Mas, claro, faço minhas pequenas transgressões. “Transgresser, c’est humain”, dizem. Comprei na minha última viagem um tal “Le gouvernement des juges” (Editora Desclée De Brouwer, 2023) por 18,90 euros. Embora em capa mole e papel de jornal, é um livro recentíssimo e o assunto é “do momento”. Foi um investimento.

O peso que carregamos numa viagem é algo relevantíssimo. Para o nosso conforto e bolso. Carregar malas em trem é luta. A bagagem em avião está cada vez mais cara. E livros pesam deveras. Procuro livros leves e muitas vezes “dispenso” livros interessantes, porém pesadíssimos. Mas aqui também às vezes transgrido as regras. Na mesma viagem acima citada comprei um tijolão em capa dura intitulado “Portraits de procureurs” (Tomo 1, Editora LexisNexis, 2020), que “apresenta biografias de procuradores [da república francesa], algumas bem detalhadas, acompanhadas da história de processos em que estes procuradores atuaram, outras mais sucintas, mas esclarecendo uma questão particular de direito relacionada ao tema do respectivo capítulo.

Pela evocação das personagens, o autor busca demonstrar que os procuradores da república participaram de inúmeros eventos políticos, do desenvolvimento institucional, legal e social do país, acontecimentos fundamentais que formataram a história da França”. Embora pesando um 1kg, comprei o dito cujo. Évidemment, quero conhecer a história dos meus congêneres gauleses.

Por fim, o critério das imagens nos livros. Se sou um amante dessa mistura livresca – letras, imagens e, se possível, até som, por meio de uma bela interpretação –, reconheço que esse critério tem um problema. Ele está quase sempre em contradição com os critérios do preço e do peso. Os livros com imagens geralmente são caros e pesados. Mas dou meus pulos.

Em South Kensington/Londres, comprei um maravilhoso livro de divulgação científica (gênero literário que adoro), “Scientifica Historica: how the world’s great science books chart the history of knowledge” (de Brian Clegg, Ivy Press, 2019), por menos de 10 libras. Mil e uma imagens. Belíssimo. Quanto ao peso, tomei logo um vinho da mala. E, já em Paris, topei com um achado: “Les timbres: guide pratique du collectionneur” (Editions Atlas, 1984), por Benito Caronene (texto original em italiano). Livro de formato grande, mas usado e baratíssimo. 1 euro. Imagens/fotografias de selos em gostosíssima fartura. Longe de casa, funcionou para mim como a “Madeleine de Proust”, em busca de um tempo em que, menino-filatelista, aprendia e sonhava com os colecionadores do mundo. Pagaria cem vezes mais e carregaria o danado nas costas.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 22/09/2024 - 10:52h

Leis e salsichas

Por Bruno Ernesto

Estação ferroviária em Dusseldorf-Alemanha Foto do autor da crônica)

Estação ferroviária em Dusseldorf-Alemanha Foto do autor da crônica)

Durante as aulas de geografia no ensino fundamental, lembro muito bem que os professores falavam de forma recorrente acerca do problema demográfico no Brasil e no mundo, sempre chamando a atenção para a diferença da pirâmide da faixa etária da população dos países desenvolvidos em relação aos subdesenvolvidos, destacando, repetidamente, que nos países subdesenvolvidos a base era maior por ter a população mais jovem e, ao contrário, menor, quando a população era de um país desenvolvido.

Aparentemente, a maior preocupação naquela época era que a teoria do inglês Thomas Malthus, considerado – ironicamente – o pai demografia, se concretizasse.

Em síntese, sua teoria consistia em afirmar que, em breve, haveria mais gente que alimento disponível, o que, por obvio, seria um terrível problema.

Embora a produção de alimentos no mundo hoje seja suficiente para alimentar toda a população mundial, a Organização das Nações Unidas estima que 750 milhões de pessoas passem fome no mundo, além de haver uma fortíssima tendência para que a insegurança alimentar se acentue até 2030.

Passados tantos anos daquelas aulas, em que pese essa preocupação permaneça latente, à fome somaram-se outros tantos problemas, especialmente com relação à taxa de natalidade, cuja tendência é de diminuir acentuadamente. Como dizem os economistas: basta ver as estatísticas.

Enfim, cada tempo com os seus problemas.

Entretanto, temos visto o surgimento da geração nem-nem, que é formada pelos jovens da faixa etária entre 15 e 29 anos de idade que, como o nome diz, nem estuda e nem trabalha.

Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em seu último relatório Education at a Glance 2023 Report, até mesmo nos países desenvolvidos esse fenômeno é preocupante, a exemplo da Alemanha, onde o índice dessa população alcançou 8,59%, enquanto no Brasil foi de 24,37%, ou seja, quase três vezes superior, o que demonstra que, embora seja um fenômeno global, aqui, o impacto é muito mais intenso.

Se você fizer uma rápida pesquisa sobre a situação econômica na Alemanha, verá que, apesar dela ser a terceira maior economia mundial, com um PIB estimado de 4,42 trilhões de dólares, nos últimos anos ela tem enfrentado sérios problemas econômicos-sociais, com desemprego acentuado, inclusive, com uma parcela significativa da população sem moradia própria e algumas fortemente dependentes de programas de assistência social, inclusive para suprir a alimentação, pois as aposentadorias são irrisórias. Daí o porquê de a teoria de Malthus nunca ter sido, de fato, um problema a ser considerado.

Atente-se que a Alemanha é o país do Welfare State, o tão falado Estado do bem-estar social e que, de fato, foi implantado por volta de 1880 com Otto von Bismark, e intensificado após Segunda Guerra Mundial, como efetiva seguridade social, que nada mais é, senão, o Estado assistencial que garante a todos os cidadãos os padrões mínimos de renda, saúde, educação, habitação e previdência.

Diante desse calhamaço de questões, penso que devamos refletir sobre algo que parece ter sido posto em segundo plano de uns tempos para cá, e que deve ser cultivado a vida inteira e de forma sistemática: o incentivo.

Acerca dessa questão deve-se, inclusive, possibilitar um ponto de inflexão. Foi justamente esse o sentido de um outro texto de minha autoria, intitulado Devagar e sempre (//blogcarlossantos.com.br/devagar-e-sempre/ ), onde convidei o leitor a refletir sobre a necessidade de não se acomodar; de ter pulso em suas decisões.

O que vemos é que, muito embora certas decisões devam ser tomadas unicamente pelo próprio individuo, ante a sua autodeterminação, há situações nas quais o apoio emocional – mais que financeiro, diria – é crucial para que ele possa tomar a decisão mais próxima da ideal possível. E isso, necessariamente, depende do seu entorno, que, embora, por vezes, não comungue com suas ideias, deve comungar com seus anseios. Isso sim, é o verdadeiro.

Lembro muito bem de um episódio narrado por Manuel Dantas Vilar Suassuna, artista plástico e filho de Ariano Suassuna.

Ele conta que, quando criança, sua mãe queixou-se a Ariano, dizendo-se muito preocupada com o filho, que dizia querer ser mendigo. Ariano, diante daquela situação, disse que achava era bom, pois pensava que ele não queria ser nada na vida.

Tempos depois, sua mãe tornou a queixar-se preocupada, dessa vez dizendo que o filho estava dizendo que queria ser ladrão. De pronto, Ariano disse que estava melhorando, pois antes o filho só ia pedir, agora ele estava tendo uma atitude.

Após isso, Dantas mostrou ao pai que estava aprendendo a desenhar e, com o apoio de Ariano, tornou-se artista plástico, atividade que adotou como meio de vida, imprimindo seu próprio nome no meio artístico-cultural.

De tal sorte, o apoio se mostra essencial para algumas decisões individuais. Não que devamos persuadir o outro a mudar seus planos e ideias. Nem sempre.

A despeito disso, diante do possível recrudescimento da tendência ao nem-nem, lembrando uma famosa frase de Otto von Bismark, o unificador da Alemanha e seu Estado do bem-estar social, seria imperioso refletir acerca dos limites de certas liberdades:  “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis.”

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 22/09/2024 - 09:50h

A importância da reciprocidade

Por Odemirton Filho

Foto ilustrativa (página jrmcoaching)

Foto ilustrativa (página jrmcoaching)

Na trilogia de O poderoso chefão, de Mario Puzo, um best seller que foi adaptado para um filme de grande sucesso no cinema, há um diálogo que acontece mais ou menos assim:

– Padrinho, eu preciso de sua ajuda.

– Interessante, você agora quer minha ajuda, mas nunca me convidou para tomar um café – responde Don Vito Corleone (interpretado pelo ator Marlon Brando).

Pois bem, quero tratar de reciprocidade. No dia a dia de nossas vidas convivemos com diversas pessoas. São familiares, colegas de trabalho, da faculdade, do nosso círculo de amizade. Enfim, por sermos gregários por natureza precisamos dessa interação, desse calor humano.

Acontece, porém, que muitas vezes oferecemos o nosso melhor, a nossa atenção, o nosso ombro e, na maioria das vezes, inexiste reciprocidade. Reciprocidade, diga-se, é oferecer ao outro aquilo que nos é concedido. Assim, se alguém diz que gosta de nossa companhia, e sentimos o mesmo apreço, dizemos que a recíproca é verdadeira.

No cotidiano de nossas vidas é comum pessoas que “só querem venha a nós, vosso reino, nada”! Pessoas que querem nossa atenção e consideração. Contudo, nunca “chegam junto” quando precisamos. E nem é preciso ir longe. Em nossas famílias – e todas são iguais – há aqueles que adoram pedir ajuda, todavia, nunca estão prontos para ajudar.

Em famílias numerosas não é incomum que a maioria somente se encontre no velório de algum parente. Depois de sepultado o de cujus, cada um segue a sua vida, rezando para não ser o próximo da fila. Estou mentindo? Tô não.

Agir com reciprocidade ficou para poucos; gostamos de cobrar do outro aquilo que raras vezes oferecemos.

Portanto, se queremos atenção e consideração por parte de alguém, precisamos ofertá-las, pois “não há nada mais gratificante do que o afeto correspondido, nada mais perfeito do que a reciprocidade de gostos e a troca de atenções”. É assim que deve ser no dia a dia, penso eu.

Convide quem é atencioso com você para, pelo menos, tomar um cafezinho, jogar conversa fora e dar boas risadas; e se for acompanhado com pastéis será ainda melhor.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 22/09/2024 - 09:06h

O Atheneu do Rio Grande do Norte

Por Ivan Maciel de Andrade

Colégio Atheneu no prédio em que funciona até hoje foi inaugurado em 1954 (Foto: Jaecy/Fatos e Fotos de Natal Antiga)

Colégio Atheneu no prédio em que funciona até hoje foi inaugurado em 1954 (Foto: Jaecy/Fatos e Fotos de Natal Antiga)

Houve uma época em que o velho Atheneu Norte-rio-grandense tinha um quadro de professores formado por vários de nossos melhores intelectuais. Mas os professores do Atheneu não eram apenas intelectuais, embora esse referencial já fosse inesperada e surpreendentemente valioso para um colégio público de ensino médio. Eram professores acima de tudo brilhantes e cultos. Com projeção limitada à província mas com talento e conhecimentos que mereciam ser reconhecidos e valorizados numa exigente perspectiva nacional.

Cito nomes que me chegam de imediato à memória: Antônio Pinto de Medeiros, Esmeraldo Siqueira, João Medeiros Filho, Alvamar Furtado e Floriano Cavalcanti.

Lembro-me de Antônio Pinto em meio a grupos reunidos no Grande Ponto que o ouviam com silenciosa admiração. Um silêncio que era entrecortado por frequentes e boas risadas. Porque Antônio Pinto era um “causeur” irreverente e espirituoso. Características que ele transpunha para a coluna de crítica literária semanal que mantinha em um de nossos jornais. Seu carisma lhe garantia uma posição de liderança intelectual no Estado. Que somente cessou com a sua mudança para o Rio de Janeiro.

Fui aluno de Esmeraldo Siqueira. Suas aulas eram vibrantes e com muito sarcasmo: brandia com engenho e arte o afiado gume da crítica literária, social e política. Tinha cultura abrangente e diversificada. E usava a sua poderosa capacidade argumentativa para desmi(s)tificar “verdades” consagradas pela desinformação, intolerância e má-fé dos interesses dominantes. Apesar de manter uma distância asséptica da mediocridade e maledicência provincianas, não vivia isolado num claustro livresco. Posicionava-se com ardor e veemência diante dos problemas de sua época e de seu meio.

João Medeiros Filho não era propriamente um filólogo, porém dominava o nosso idioma, quer para utilizá-lo com grande força de convencimento, quer para ensinar em classe o seu uso correto. Ou seja, o vernáculo atualizado historicamente pela vivência popular. Qualidades que, associadas a extraordinários conhecimentos jurídicos, o situariam entre os maiores tribunos do Júri de nosso país.

Havia um grande conhecedor da História Universal, mas que era sobretudo um incrível contador de histórias: Alvamar Furtado. Com um raro dom de descobrir o tempero de humor oculto nas circunstâncias mais comuns ou mais insólitas. Capaz de reter com sua exuberante fluência verbal um círculo extasiado de espectadores.

Sua dicção escandida, que se impostava nas horas certas, era um recurso valorizador das saborosas digressões sobre os mais variados assuntos, inclusive o cotidiano das estripulias políticas. Copio o gosto dele por hipérboles: as suas narrativas eram cinematográficas!

Tivemos no país e particularmente em nosso Estado pouquíssimas vocações de estudiosos ou cultores da filosofia. Floriano Cavalcanti foi magistrado, professor do Atheneu e da Faculdade de Direito da UFRN. Tinha o gosto pelo estudo e aprofundamento dos temas filosóficos. Quando discorria em aula sobre filosofia do Direito assumia um tom eloquente, de esfuziante oratória que arrancava calorosos aplausos de alunos e até de professores que iam ouvir as suas belas preleções.

Ivan Maciel de Andrade é professor, advogado, escritor

*Crônica extraída de página do autor no Facebook

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Categoria(s): Crônica
domingo - 22/09/2024 - 06:48h

Toda nudez será castigada

Por Marcos Ferreira

Ilustração do Adobe Stock

Ilustração do Adobe Stock

Em uma de suas mais aclamadas obras, Nelson Rodrigues (notório machista) trovejou que toda nudez será castigada. Para isso eu nunca dei bola e muito menos me preocupei. Ultimamente, no entanto, tal “ameaça” vem me causando sobrosso. Não estou sugerindo que ando mostrando minhas partes em público ou para alguém em específico. Não se apoquentem; explico já do que se trata.

Antes, não faz muito tempo, eu dormia nu. Todo nu entre e sob os meus cobertores: dois lençóis do mesmo tecido de redes de dormir, macios e aconchegantes. À noite, então, depois do banho, aqui basta apenas um ventilador na velocidade mínima para que eu me sinta confortável, pois a casa não tem forro e o vento circula bem, a ponto de fazer um friozinho bom durante a madrugada. Nesse momento, como de costume, desligo o ventilador quando vou ao banheiro verter água.

Hoje, portanto, parei de dormir desnudado, como nos revela poeticamente o francês Charles Baudelaire acerca do próprio coração. Visto-me com roupas leves e amaciadas. E por que mudei? Simplesmente porque de uns tempos para cá, e tendo notícias de tantos casos de infarto, passei a imaginar batendo as botas e ser encontrado por familiares, amigos ou estranhos com minhas partes expostas e flácidas. Ainda mais eu, que sou sexualmente resumido, como diz o poeta Cid Augusto. Espero não “empacotar” tão cedo, todavia considero esse tipo de cautela razoável.

Dessa forma, segundo a lógica do Nelson Rodrigues, a minha nudez também seria castigada nesse aspecto. Imagino o embaraço (enquanto hipotético defunto) de me flagrarem em condições tão lastimáveis. A nudez feminina, a meu ver, é mais harmoniosa e menos constrangedora do que a do homem.

O coração, a exemplo do cérebro, dificilmente negocia uma segunda oportunidade com quem o possui. Às vezes, quando menos se espera, o ataque é fulminante. E parece (Dr. Diego Dantas que se pronuncie) que nem precisa que o sujeito seja doente cardíaco. Quanto a mim, que sou hipertenso, a situação inspira cuidados. A losartana potássica de cinquenta miligramas não me dá garantias plenas. Sou um sujeitorelapso e estou há vários anos sem me consultar com um cardiologista.

Nos últimos dias, sobretudo à noite, tenho pensado com apreensão em certas providências para que, no caso de um ataque cardíaco fulminante, as pessoas possam chegar até mim com facilidade. Uma delas (mais simples) é deixar cópias das chaves desta casa com Natália. Assim ninguém terá que arrombar nada ou recorrer a um chaveiro. Por essas e por outras, então, eu passei a dormir vestido. Dessa forma, contrariando a obra do rabugento Nelson Rodrigues, não serei castigado.

Raras são as vezes em que o coração nos dá algum tipo de aviso, uma segunda chance. Em “Autopsicografia”, poema de Fernando Pessoa, mais precisamente na última estrofe, o bardo português declara o seguinte:

“E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração”.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 15/09/2024 - 11:46h

Devagar e sempre

Por Bruno Ernesto

Foto do autor

Foto do autor da crônica

Mais que escrever, saber ler e interpretar um texto, talvez seja o elo crucial entre o escritor e o seu público. Não digo apenas leitores, mas também os ouvintes.

Sim, um belo texto, necessariamente, não precisa ser lido pelos seus destinatários.

Embora saibamos que a leitura profunda é crucial para que possamos internalizar um texto, inclusive, propiciando até mesmo uma alteração nas ligações cerebrais com o passar dos anos, há textos que só se completam com uma boa interpretação. E, para mim, Antônio Abujamra foi um desses intérpretes.

Lembro que passei a admirá-lo como intérprete do personagem Ravengar, da novela Que Rei Sou Eu?, que foi ao ar no ano de 1989.

Apesar de ser só uma criança naquela época, e não ligar muito para nada na vida, além de brincar, aquela voz firme, forte e de uma dicção peculiar, chamou muito minha atenção.

Tempos depois, fui conhecendo sua face mais interessante, como jornalista, filósofo, apresentador e, sobretudo, seu humor cítrico que, à frente do programa Provocações, se mostrou um provocador nato.

Abujamra sempre encerrava o programa interpretando um poema ou textos literários, e o fazia de uma forma inigualável.

Me desculpem os demais intérpretes. Até hoje, não vi melhor.

Tempo desses, assistindo aos vídeos do programa Provocações, me deparei com Abujamra interpretando uma crônica de autoria da escritora Martha Medeiros, que me chamou bastante a atenção. Foi como um sincretismo religioso, a união daquele belíssimo texto com a leitura feita por Abujamra.

Foi, em verdade, uma espécie de transliteração; talvez, uma transmutação; quem sabe uma apostasia, ao escutá-lo interpretando a crônica que Martha Medeiros publicou no jornal Zero Hora, na véspera do Dia de Finados do ano 2000 – dia de muita reflexão para poucos -. intitulada “A morte devagar”, na íntegra a seguir transcrita:

“Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias contradições. 

Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece. 

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida. 

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos. 

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos. 

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo. 

Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar. 

Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população. 

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar”.

A despeito do provérbio latino “Nemine parco” (Ninguém escapa), vez ou outra, derrapamos em atitudes que aceleram o processo. Ainda que inconscientemente levadas a cabo.

Claro que não se pode viver à margem dos problemas diários, das incongruências e do ocaso dos pensamentos positivos. Infelizmente não dá.

Também não podemos, evidentemente, viver numa letargia, inação ou introspecção que beire ao conformismo. Nem tanto, nem quanto; com dizem. Mas, sempre que possível, nem sempre, diria.

Talvez, inconscientemente, caiamos no Paradoxo de Salomão, quando podemos dar bons conselhos e, nós mesmos, sermos um desastre tomando nossas próprias decisões. 

Talvez devêssemos, vez ou outra, não seguir certos conselhos, fugir da congruência e ortodoxia, e mandar às favas a coerência. Quem sabe, falar dez vezes antes de pensar.

A iniciar por nós mesmos. Porque a vida está aí, devagar e sempre.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 15/09/2024 - 10:42h

Zero à anotação

Por Marcelo Alves

Foto ilustrativa da Mundo boa forma

Foto ilustrativa da Mundo boa forma

Na Europa, em especial na França, já de algum tempo, há quem denuncie aquilo que eles chamam de abuso das “notações” – leia-se a prática de se classificar ou dar nota a tudo –, por consumidores/clientes, em sites de diversas empresas (a Uber, por exemplo) ou mesmo em plataformas virtuais para tanto direcionadas (a exemplo do TripAdvisor).

Alega-se que esse tipo de notação tem “infernizado” a vida dos trabalhadores das empresas avaliadas. As notas dadas, marcadamente subjetivas, têm ensejado reduções de salários, suspensões de contrato de trabalho ou mesmo demissões com justa causa, entre outras penalidades. “Boicotem esse sistema abjeto”, é o que já pedem as organizações em prol dos trabalhadores.

Ademais, na selva virtual de hoje, as inúmeras plataformas especificamente direcionadas para a notação têm sido um inferno não só para os trabalhadores. Basta irmos ao Google e encontraremos profissionais liberais – médicos, por exemplo – bem ou muito mal “notados”. E especificamente quanto ao Golias da Web TripAdvisor, muito em razão dos chamados “serial-noteurs” (de boa ou má-fé), este tem se tornado uma ameaça “insuportável” às empresas/profissionais de hotelaria e de restaurantes, na França, mas também no mundo inteiro.

Novamente estudando na Aliança Francesa de Natal, por intermédio do nosso livro/método de francês “Défi 5”, tive acesso a um texto do Concierge Masqué da revista Vanity Fair francesa, em que se grita “Morte ao TripAdvisor”, uma plataforma que, veiculando as “chantagens mesquinhas” dos clientes de restaurantes e hotéis – muitas vezes em busca de um jantar ou um pernoite como recompensa –, transformou-se numa “ditadura de Jecas Tatu”. Texto forte.

A moda da notação/classificação está se espalhando perigosamente. O tal Concierge Masqué até especula sobre uma exigência do governo chinês de uma notação recíproca entre seus concidadãos, algo que “não iria desagradar a todos neste minúsculo mundo”. Nessa toada, aliás, é interessantíssimo o episódio “Nosedive” da badalada série de ficção científica britânica “Black Mirror”. Na estória, as pessoas são reciprocamente notadas/classificadas em um aplicativo do tipo Instagram, com avaliações de 0 a 5. Graças às notas/classificações de outrem, a pessoa pode conseguir tudo na vida… ou nada. E aí temos a confirmação da máxima de Jean-Paul Sartre (1905-1980) – “O inferno são os outros”.

Embora isso ainda possa ser tido como um tipo de distopia, acho que não estamos muito longe desse “abominável mundo novo”. Por exemplo, na Internet, outro dia, dei de cara com mais de um quiz que prometia apontar a minha “real” posição política, se “de esquerda ou de direita”. No geral, fui classificado como “de centro”, mas, por ser a favor da proteção do meio ambiente, “com ideias de esquerda”. Ainda acho que proteger o meio ambiente é um dever universal, cósmico.

Para os mais diversos fins, até de amizade ou relacionamento, as pessoas já estão hoje notando/classificando os outros como de “direita” ou de “esquerda”. E laços são completamente rompidos. Aliás, tenho um amigo querido, já fanático por natureza, que pedestremente nota/classifica a tudo e a todos com base na posição dos assentos da Assembleia Revolucionária Francesa, fato histórico que ele desconhece por completo.

Sentado num já imaginário “Muro de Berlim”, esgoela delírios destros e canhotos. Em meio a qualquer assunto, sai com “esse cara é um esquerdista fdp”, “isso é coisa da esquerda”, “na direita não tem isso não” e por aí vai. Outro dia, curioso, eu perguntei a ele se “quem toma suco de maracujá é de direita ou de esquerda”. Gostaria de saber, sob esse critério, de que lado da sua revolução imaginária eu estaria.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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