• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 02/03/2014 - 08:32h

A seiva doce do massapê

Por François Silvestre

Mesmo a grafia indicando som aberto, a sonoridade do mato consagrou o som fechado, massapê. Mais bonito e mais próximo da sua compleição. Até porque cada palavra acaba incorporando na sonoridade da pronúncia o formato da coisa nominada.

Quando no sertão, vítima das secas e dos teóricos distantes, que se arvoram em conhecedores das dores daqui, as primeiras chuvas do ano adocicam a seiva dos tabuleiros e recepcionam a maciez colorida do capim de seda, o plantador de feijão remexe com as mãos a umidade do massapê. Depois, põe a mão em forma de aba sobre os olhos e paquera as torres do Nascente.

Os primeiros brotos da cebola braba animam-se nos quintais anunciando mais uma espera. Junta-se a eles o cantar dobrado do sabiá, que só canta assim nas vésperas de chuva. Em ano de seca fechada, o sabiá trina uma toada linear, sem dobra, sem risco do desafino. Ele não quer iludir as sementes guardadas num frasco de plástico, longe do gorgulho, que semearão a terra molhada para a colheita no tempo das fogueiras.

Quem sabe disso tudo é Tico de Quinola, habitante da ponta do banco de cumaru, na parte oeste do balcão da bodega de Priquitim, onde ele se aboleta desde cedo, a receber agrados de cachaça, acompanhada de pequenos pedaços de laranja ou mais raramente um naco de queijo de coalho.

Fala pouco, como toda gente sabida. Ouve primeiro, para não desagradar a opinião do freguês passante. Pode lhe custar uma dose perdida. Já foi aluno do “Almino Afonso”.

“Tão falando numa seca verde”, diz Leon de Amância, puxando conversa. Não foi suficiente pra Tico manifestar-se. Aguardou mais alguma extensão da fala. “Nem sei o que danado é isso, seca verde”? Essa observação meio pergunta de Leon foi a deixa pra ele expor sua opinião sem medo.

“Seca verde é o governo. Nós aqui só conhecemos secas cinza”. Falou animado, já recebendo uma boa bicada do visitante, acompanhada duma lasca de queijo. E aí deitou lição: “Mostrar juazeiro verde, mesmo na seca, não é vantagem. Nem floração do mofumbo. Nem pingos nas rochas da Casa de Pedra. Pra isso não se precisa das promessas calejadas do governo. E quem enricou com promessa foi São Severino dos Ramos”.

Nas telas das TVs do Sudeste, o Nordeste aparece muito rapidamente, nas previsões do tempo. E o Rio Grande do Norte inexiste. A moça passa a mão depressa pelo mapa daqui, enquanto se detém demoradamente nas nuvens de cada pedaço dos Estados de lá.

Mesmo assim, o furabarreira continua animando o matuto. O inchu e o inchuí tão nem aí. Enchem de mel claro suas capas, como a dar o dedo aos “sertanistas” de longe. Não conhecem nem as cidades onde moram e exibem cultura, querem conhecer o Sertão, que não permitiu ainda suas entranhas a ninguém. Quando muito, uma brecha à linguagem.

Enquanto isso, Tico de Quinola toma mais uma no cumaru de Priquitim. Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

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Categoria(s): Crônica

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