domingo - 08/06/2025 - 17:26h

Esclerocardia, o mal da existência humana

Por Marcos Araújo

Ilustração com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Ilustração com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Vivemos uma era marcada por contrastes gritantes: avanços tecnológicos e científicos sem precedentes, ao lado de uma escalada de violência e guerras que parecem saídas de tempos primitivos. Em meio a esse cenário, uma palavra bíblica ressurge com força e urgência: esclerocardia – a dureza do coração.

No grego bíblico, sklerokardia aparece para descrever a resistência do ser humano à voz de Deus e ao próximo. Jesus usou esse termo para denunciar aqueles que, cegos por sua religiosidade legalista, eram incapazes de enxergar a misericórdia (Mc 3:5). Hoje, essa mesma esclerocardia se manifesta de forma assustadora em nossa indiferença diante do sofrimento alheio – especialmente das vítimas de guerras que se alastram pelo mundo.

A cada nova imagem de crianças soterradas, famílias despedaçadas, cidades reduzidas a escombros, muitos de nós sentimos… nada. Seguimos rolando o feed, trocando de canal, anestesiados por excesso de informação e indiferença. O que antes nos chocava, hoje nos entedia. Esta é a esclerocardia do século XXI: não um endurecimento físico, mas espiritual e moral.

Nos últimos dez anos, conflitos espalhados pelo mundo causaram perdas humanas devastadoras e, muitas vezes, invisíveis à nossa rotina. Podemos mencionar:

  • Síria: desde 2011, entre 580000 e 656000 mortos, incluindo mais de 26000 crianças e mais de 16000 mulheres;
  • Iêmen: conflito iniciado em 2014 já resultou em cerca de 377000 mortes até 2021, sendo 70 % por causas indiretas como fome e doenças;
  • Sudão (desde 2023): houve mais de 150000 civis mortos, além de 522000 bebês falecidos por desnutrição;
  • Ucrânia (desde 2022): mais de 45000 civis mortos e quase 32000 feridos até abril de 2025;
  • Gaza e Israel – só o ano de 2024 viu mais de 61000 vítimas civis de explosivos, com Gaza representando 39% desse total – incluindo cerca de 14435 mortos;

Contam-se cerca de 59 guerras, somente nesta década, com aproximadamente quase 1 milhão de mortos.

Para a humanidade do presente, essas mortes não causam mais emoção ou qualquer tipo de comoção. A compaixão é uma marca inerente à condição humana, e sua negação caminha em direção à desumanização. Deixar de sentir pelo imenso sofrimento nas guerras é negar a nossa própria humanidade. A palavra “compaixão” tem origem latina, proveniente do termo “compassio”, que significa “sofrimento em comum” ou “sofrimento partilhado”. Este termo é formado pela junção de “cum”, que significa “com”, e “passio”, que vem do verbo “patior”, que significa “sofrer” ou “ser paciente”.  Assim, a palavra “compaixão” carrega a ideia de sofrer ou sentir junto com o outro, partilhando sua dor e tristeza.

No presente, a ESCLEROCARDIA e a FALTA DE COMPAIXÃO caminham juntas e têm encontrado abrigo até em discursos religiosos. Quantas guerras ainda serão travadas em nome de Deus? Quantas mortes continuarão sendo justificadas por ideologias religiosas que ignoram os mandamentos mais elementares da fé – amar a Deus e ao próximo? A história mostra que a religião, quando usada para legitimar ódio, alimenta monstros em vez de curar feridas.

Na Bíblia lemos sobre corações de pedra desafiando o clamor das vítimas: “Endureço o seu coração para que não ouça…” (Ex 7:3) Mas, também reafirma: “Dar-vos-ei coração novo… e porei dentro de vós espírito novo” (Ez 36:26). A fé verdadeira exige um coração renovado pela compaixão. O Evangelho manda que soframos com o próximo — não nos distanciemos. Ignorar o lamento das famílias sírias, iemenitas, sudanesas, ucranianas e palestinas é violar o mandamento de amar ao próximo.

A verdadeira fé exige coração de carne, não de pedra (Ez 36:26). Um coração sensível ao clamor dos oprimidos, inquieto diante da injustiça, quebrantado pela dor dos inocentes. A espiritualidade cristã não é um refúgio para a alienação, mas um chamado à responsabilidade: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5:9).

A cura para a esclerocardia não virá com discursos vazios, mas com ações concretas de empatia, acolhimento e justiça. O mundo não precisa de mais religião. Precisa de mais evangelho. Um evangelho que toque, transforme e movimente corações.

Se a esclerocardia é o mal, a compaixão é o remédio. A Igreja é chamada a ser farol de humanidade num mundo que se endurece. É hora de colocar a fé em prática, com ações que devolvam ao mundo o que ele mais perdeu: a capacidade de sentir, de cuidar e de amar.

Marcos Araújo é advogado, escritor e professor da Uern

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Categoria(s): Artigo

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