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domingo - 24/07/2022 - 14:28h

Irresignação perdoada – O Júri de Jararaca

Por Honório de Medeiros

No dia 9 de junho de 2017, a partir das nove horas da manhã, no Fórum Municipal de Mossoró, atuei como advogado de defesa no júri simulado sob a presidência do juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, que julgaria José Leite Santana (1901-1927), o notório cangaceiro Jararaca.

Era a comemoração do aniversário da resistência de Mossoró ante o ataque do bando de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião. A acusação ficou a cargo do advogado Diógenes da Cunha Lima.

Terminados os trabalhos, o Conselho de Sentença houve por bem inocentá-lo por seis votos a um. Segue, abaixo, o texto que norteou minha participação.

Júri de Jararaca aconteceu em 2017 em sala de julgamentos da justiça local (Arquivo)

Júri de Jararaca aconteceu em 2017 em sala de julgamentos da justiça local (Arquivo)

Esta é uma história de perdão, não de julgamento. “Quem tudo compreende, tudo perdoa”, disse-nos Tolstoi, citando Spinoza. Antes, entretanto, peço permissão às senhoras e aos senhores para mergulhar nas águas do meu próprio passado, pois foi aqui mesmo, nesta Mossoró libertária, que eu nasci e cresci, ao lado da Igreja de São Vicente.

Ali ficava a casa de Rodolpho Fernandes, depois a de Alfredo Fernandes e, em frente, a dos Hollanda. Do lado, a de Joaquim Perdigão. Atrás, a de Pacífico Almeida. No final, a de Ezequiel Fernandes. Era o chamado Bairro Novo, escassamente povoado. A todas essas casas dominava a Igreja, à sombra da qual jogávamos bola e brincávamos de bandeirinha, no mesmo chão que foi pisado pelos cangaceiros, dentre eles José Leite de Santana.

Por que estiveram ali? Por que atacaram Mossoró? Compilei quatro teorias.

José Leite de Santana é fundamental para que se entenda a quarta teoria. José Leite de Santana, Ferrugem e Mormaço disseram que Lampião nunca pensou em invadir Mossoró. José Leite de Santana abriu o jogo para Lauro da Escócia. José Leite de Santana quis falar com Rodolpho Fernandes e não deixaram. José Leite de Santana por isso mesmo foi morto.

Mas, como falar em José Leite de Santana sem falar no cangaço? Como falar no cangaço sem falar da época na qual o cangaço aconteceu? Como falar daquela época sem recordar as condições de vida do sertanejo nordestino, fonte de onde o cangaço emanou? Como falar dessa fonte sem entender a crucial diferença entre os resignados e os que não se submeteram? Como abordar essa questão sem perceber que dentre os que não se submeteram estão aqueles que tomaram o caminho do mal, enquanto outros, o do bem? Como não compreender que nem sempre a opção pelo caminho do mal foi algo ao qual se pudesse resistir, tamanha a incapacidade de se ter, nas próprias mãos, o próprio destino?

Esses são os outsiders, os irridentes, os insubmissos, os irresignados, os diferentes, os revolucionários. Esses são o sal da terra, para o bem ou para o mal. Trágico quando é para o mal, como no caso de José Leite de Santana; sublime, quando o é para o bem, como no caso de tantos aos quais devemos nosso avanço enquanto espécie.

O cangaço é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes. Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas existências acicate o nosso repouso envergonhado. O cangaço é a história de homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram serem escravos; de homens que optaram por sobreviver sem lei e sem rei, nos mesmos moldes dos desbravadores dos nossos sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de fera, a liberdade da qual nos falou Hobbes em “O Leviatã”.

O cangaço foi o último suspiro dos desbravadores do Sertão, aqueles mesmos que disputaram a terra com os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, numa guerra contínua e esquecida do resto do mundo. A guerra dos bárbaros.

José Leite de Santana foi assim. Percebemos isso em seu olhar na célebre fotografia tirada na prisão em Mossoró. Passei muito tempo olhando para a fotografia. Ali não estava apenas o olhar de quem está ferido. Ali estava, muito mais que isso, o olhar de quem foi subjugado à força, mais uma vez. É o olhar de uma fera de quem tiraram sua liberdade. É o olhar de quem vai morrer.

Jararaca teve "pena de morte" decretada e terminou sendo executado (Foto: reprodução)

Jararaca teve “pena de morte” decretada e terminou sendo executado (Foto: reprodução)

José Leite de Santana já nasceu subjugado, e contra essa subjugação lutou até o último instante: nasceu bastardo, pobre, preto e desvalido. Um infame. Infame antes mesmo de ser um homem mal. Não se trata de dizer que o meio fez a escolha dele. Não podemos cair nessa armadilha. Ele escolheu seu caminho. Outros fizeram opções diferentes. O comum dos mortais escolheu vergar sob o peso da escravidão diária. Pagou por isso. Mas antes mesmo da escolha, o destino já o tinha jogado na lata de lixo dos dejetos humanos.

Como julgar José Leite de Santana com os nossos olhos? Um homem que não tinha o que comer, se não chovesse, e não chovia; não tinha médico; não tinha dentista; não tinha transporte; não tinha estudo; não tinha dinheiro; não tinha passado, não tinha presente, não tinha futuro, não tinha nada.

Pois foi este homem, refugo da vida, que nos permitiu levantar um pouco a cortina, o véu que esconde a verdade dos fatos, morreu violentamente e o povo o transformou em herói e o santificou. Herói porque ousou a coragem da loucura ou a loucura da coragem de viver sem lei e sem rei, os últimos deles. Santo porque intercede, lá entre os acolhidos pela infinita bondade de Deus, pelos que sofrem, para assim purgar as dores que causou neste mundo de miséria e sofrimento.

Não é possível ver-se nas intercessões dessa alma torturada a quem o julga lá no Alto, em defesa dos que ficaram para lhes minorar a dor, um pedido de perdão por todo o sofrimento que causou quando vivo.

Não é ele um dos cainitas, dos quais nos falou Herman Hesse, um dos escolhidos por Deus para ser as trevas que valorizarão a luz? Por que não podemos perdoá-lo, se perdoamos São Paulo, padre Cícero, Santo Agostinho, Maria Madalena, São Longino, o chefe dos soldados romanos que, no caminho para a crucificação de Jesus, perfurou o peito dele com uma lança?

Somente a Santa Igreja pode, pelo Princípio Petríneo das Chaves, dizê-lo oficialmente santo. Mas assim como padre Cícero, para o povo, ele já o é. Se o condenamos hoje, condenamo-lo novamente; se o absolvemos estamos a ele ofertando o nosso perdão.

Jararaca: morte em Mossoró (Foto: reprodução)

Jararaca: morte em Mossoró (Foto: reprodução)

RECONSTITUAMOS OS ÚLTIMOS DIAS DE JOSÉ LEITE SANTANA: 13 de junho, final da tarde: é ferido; 14 de junho, pela manhã: é traído por Pedro Tomé; à tarde: concede a célebre entrevista a Lauro da Escócia para o jornal “O Mossoroense”; o ordenança do sargento Kelé tenta lhe arrancar o dedo, para ficar com um anel; 15 de junho: identifica os cangaceiros na foto de José Octávio; 16 de junho: o tenente Laurentino de Moraes viaja para Natal; 17 de junho: o tenente Laurentino volta de Natal; 18 de junho: o laudo cadavérico é assinado pelo Juiz Eufrásio Mário, pelo tenente Laurentino de Moraes e por Dr. João Marcelino; 19 de junho: manda pedir para falar em particular com Rodolpho Fernandes; 20 de junho, naquela noite tenebrosa, às 23 horas, mais ou menos, é assassinado sob a vista dos tenentes Laurentino de Moraes, Abdon Nunes e João Antunes; sargentos Pedro Sylvio, João Laurentino Soares, Eugênio Rodrigues; cabos José Trajano e Manoel; soldados Militão Paulo e João Arcanjo; e pelo motorista Homero Couto.

Coube aos soldados o trabalho sujo, como coube quando mataram Lampião, na degolação de Maria Bonita ainda viva. As volantes eram semelhantes ou piores que os cangaceiros.

Dirá depois Luiz da Câmara Cascudo: “Ferido de morte, acuado como uma fera entre caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta, herói-bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele, empoçado no sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa, orientada para o crime, dispersava-se lentamente…”.

Absolvamos o cangaço e perdoemos José Leite de Santana. Ou, melhor, perdoando José Leite de Santana, absolvamos o cangaço.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Francisco diz:

    Como sempre, a ESQUERDA a FAVOR dos BANDIDOS!

  2. João Claudio diz:

    Esse povo fala muito a respeito de Lampião e cangaceiros, e não escreve uma só linha sobre as atrocidades e crimes hediondos que o bando causou por onde passou.

    Esse bandido Jararaca dispensa apresentaçõe; a alcunha já diz tudo.
    .
    O bando de Lampião fazia no passado exatamente o que fazem hoje os bandidos que explodem caixas eletronicos. O diferencial é o ‘modus operandi’.

    A pergunta é:

    Será que no futuro alguém vai escrever livros de cordel exaltando os bandidos explosivos atuais?
    Será que vão simular um juri e absolver, por exenplo’, Waldenar Carneiro e seus cabras da peste?

    Meu, esse povo que idolatra o bando de Lampião deve passar o dia cantando ‘Mulher Rendeira’ chupando bila de vidro e cagando em torno da Igreja de São Vicente. Cagando rodando. Entende?

    Mais: se o cidaão que escreveu essa coisa aí em cima fosse vivo na época que Lampião invadiu Mossró, o mesmo teria levado Jararaca para sua cas, dado um bom banho com sabonete Cashemere Bouquet, lavado a linda cabeleira com raspa de juá verde, em seguida cuidado dos ferimentos e, a noite, dividir sua cama com o negão. Pense num olhar 43. Pense num amor a primeira vista, digo, pense num amor ao primeiro retrato. Pense num coito platónico.

    Misericórdia ‘trêis vêis’.

    Tô mentindo, Francisco?

    P.S – não sei porque a NASA ainda não concidou os ‘amantes de Lampião’ para fazerem parte do seu seleto grupo de gênios.

    Finalizo com meu tradicional grito de guerra:

    PRA FRENTE, NORDESTALHA.

    😅😅😅😅😅😅😅😅

    • João Claudio diz:

      Por falar em gênio, há tempos a NASA está a procura de dois super-gênios tupiniquins.

      Vou revelar quem são, em primeira mão e na marca da exclusividade.

      ANOTEM:

      O gênio que inventou aquele aramezinho preso a placa de veículos automotores, e o super D+ + gênio que inventou o kit de primeiros socorros em veículos.

      Só lembrando que os dois inventos, além de não levar a lugar nenhum e serventia ZERO, nunca foi copiado por outros países, incluindo aí a República do Congo, Burundi, Sudão do Sul, Moçambique, Somália e Haiti.

      Finalizo com outro grito de guerra:

      PRA FRENTE, BRASIL SIL SIL SIL…!!!

    • João Claudio diz:

      Ops! Valdetário Carneiro.

  3. Amorim diz:

    Caro Honório, na minha vivência profissional todo marginal quando é preso ou ferido torna’se vítima da sociedade e ficam mansos, não importa quantos tenham assassinado.
    Um abraçaço.

  4. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    A esquerda… É isso Douto Francisco…?!?

    Kkkkkkkkkkkk

  5. Jany Nascimento diz:

    Fiquei impactada com seu texto. A cada linha um suspiro e um deslumre com a profundidade e suavidade ao falar sobre o tema. Parabéns!

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