Outro dia, em Natal/RN, cascavilhando as livrarias católicas da Cidade Alta, acabei adquirindo uma edição de bolso de “Filoteia, ou introdução à vida devota” (Editora Vozes, 2021), do grande São Francisco de Sales. Ando, vez por outra, xeretando o pequeno grande livro.
Para quem não sabe – e é fundamental não confundir os vários santos Franciscos, o de Assis, o de Paula, o Xavier e por aí vai –, “São Francisco de Sales nasceu aos 21 de agosto de 1567. Foi ordenado sacerdote em 1593 e em 1602 foi consagrado bispo de Genebra, onde trabalhou até sua morte. Faleceu em 1622, com 55 anos de idade. Foi canonizado em 1665 pelo Papa Alexandre VII, e nomeado Doutor da Igreja por Pio IX. Em 1923 Pio XI o declarou Padroeiro da Boa Imprensa e dos jornalistas católicos”. Li isso já na contracapa do meu exemplar.
Filoteia é um livro que carrega muita sabedoria, embora escrito há vários séculos e por um homem cuja fé em seu Deus condicionava sempre o sentido dos seus próprios juízos. É um livro que devemos ler hoje adaptando às nossas circunstâncias de tempo e lugar, claro.
Peguemos logo dele um exemplo marcadamente jurídico, que gira em torno da passagem bíblica “Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados” (Lucas 6:37). Quanto a ela, afirma São Francisco de Sales: “Oh! Quantos juízos temerários desagradam a Deus! São temerários os juízos dos filhos dos homens, porque não são juízes uns dos outros, e, julgando, arrogam-se o direito e o ofício do Nosso Senhor”. E mais até: “Então nunca podemos julgar o próximo? Nunca, Filoteia; mesmo nas sentenças do tribunal humano é Deus quem julga. É verdade que são os juízes que aí aparecem e fulminam a sentença, mas eles são apenas os ministros e intérpretes de Deus e nunca devem pronunciar um juízo que não seja segundo a sua lei, e suas sentenças são os seus próprios oráculos”.
Esses “juízes dos tribunais humanos” nunca devem se afastar da lei de Deus, “seguindo suas paixões”, é o que recomenda o santo, até para não serem, eles próprios, os juízes, também julgados. Se substituirmos Deus por Constituição/Legislação, que lição de direito temos. Meditemos! Todos!
Eis mais um trecho de Filoteia, que também se relaciona com o direito, desta feita interpretando a passagem bíblica “do argueiro no olho do próximo e da trave no nosso” (Mateus 7:3-5), uma das famosas denúncias à hipocrisia/injustiça humana:
“Nós costumamos acusar o próximo pelas menores faltas cometidas e a nós mesmos nos escusamos de outras muito grandes. Queremos vender muito caro e comprar o mais barato possível. Queremos que se faça injustiça a outros e que se façam graças a nós. Queremos que interpretem as nossas palavras benevolentemente e com o que nos dizem somos suscetíveis em excesso. (…). Defendemos com acurada exatidão os nossos direitos e queremos que os outros, quanto aos seus, sejam muito condescendentes. Mantemos os nossos lugares caprichosamente e queremos que os outros cedam os seus humildemente. Queixamo-nos facilmente de tudo e não queremos que ninguém se queixe de nós. Os benefícios ao próximo sempre nos parecem muitos, mas os que os outros nos fazem reputamos em nada. Numa palavra: nós temos dois corações, como as perdizes da Plafagônia; um, doce, caridoso e complacente para tudo que nos diz respeito, e outro – duro, severo e rigoroso para com o próximo. Temos duas medidas, uma para medir as nossas comodidades em nosso proveito e outra para medir as do próximo, igualmente em nosso proveito”.
E, para superar essa hipocrisia ou injustiça, São Francisco de Sales vaticina: “Filoteia, sê igual e justa em todas suas ações. Toma o lugar do próximo e põe-no no teu, e sempre julgarás com equidade. Ao comprares, põe-te no lugar do vendedor, e, em vendendo, no lugar do comprador, e teu negócio será sempre justo”.
O Santo, mesmo que de forma rudimentar, antecipa o imperativo categórico kantiano (que é mais sofisticado, em explicação, âmbito e consequências, por óbvio), imperativo esse que relutamos, todos, até hoje, a razoavelmente exercer. E eu assim apenas repito: sobre a Bíblia, São Francisco de Sales e Kant, meditemos! Todos!
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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