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domingo - 09/05/2021 - 04:00h

Saudades do papel

lendo jornal, jornal impresso, leitor de jornal, homens lendo jornalPor Marcos Ferreira

Porque hoje é domingo, e os domingos são especialíssimos para mim, embora muita gente goste mais das sextas-feiras e dos embalos do sábado à noite, bateu-me esta saudade romântica, singular quanto plural. Coisa de um passado ainda jovem, desabrochado numa quadra de 1997. Ano mágico em que fundamos neste município a Poetas e Prosadores de Mossoró (Poema).

Aqui tento remoçá-la — a saudade — pelo rememorar de sons, cores, olfato, legendas, fotografias. Pois é. As saudades possuem cheiro, têm ruídos, são imagéticas e quase palpáveis.

Retomo a pauta da morte material dos jornais, mortandade que se alastrou por todos os lugares deste país e do mundo. Em solo tupiniquim, entre outros vetustos diários que deixaram o suporte do papel ou faliram por completo, permito-me citar quatro veículos: Diário de Pernambuco (1825), Jornal do Commercio (1827), jornal O Mossoroense (1872) e o Jornal do Brasil (1891).

Exceto pelo Jornal de Fato, que resiste e prossegue sob a batuta de César Santos, jornalista vocacionado e gestor meritório (devemos dar a César o que é de César!), todos os veículos impressos de Mossoró quebraram. Foi assim, por exemplo, com a Gazeta do Oeste (1977).

Ao contrário de O Mossoroense, hoje limitado à sua plataforma on-line, a Gazeta extinguiu-se completamente. “Sua última edição foi às ruas no dia 31 de dezembro de 2015”, conforme registrado no blogue do Carlos Santos à época. Em tempo, Carlos é um dos pioneiros da blogosfera local.

Antes do primeiro galo bicar o sol e abrir os olhos da manhã, os jornais impressos afloravam no útero mecânico das rotativas; flores de tinta e celulose cujas pétalas-páginas revelavam a fragrância e o flagrante, o escândalo e a moral, a paz e a guerra, o Deus e o Diabo de cada novo amanhecer.

Ao menos para mim, que tive a honra de fazer parte de duas redações enriquecedoras, em O Mossoroense e na Revista Papangu, ter em mãos os veículos impressos (semanários, diários ou mensários) era algo incomensurável, uma experiência indescritível. Não havia nada mais urgente ou importante que o jornal que líamos naquelas primeiras horas do domingo.

Os jornais chegavam aos lares e leitores tão naturalmente como chegavam o leite e o pão. E, estando os três na mesa (o jornal, o pão e o leite), não raro alimentávamos primeiro os olhos.

Era uma necessidade inadiável de muita gente. Em seu bojo de alegrias e dores, sempre tão esquadrinhado, diverso e único, o jornal representava o pregão dos pregões: “Olha o jornal!”, exclamavam jornaleiros nalguns pontos do Centro, comerciando notícias ainda fresquinhas àquela época.

Eu pensava em coisas desse tipo a cada edição, especialmente quando um texto de minha autoria (um soneto, uma crônica ou conto) estava gravado em páginas do velho O Mossoroense ou da Papangu. Assim, cada qual com sua tiragem, periodicidade e público, os veículos impressos tomavam rumos imprevistos. Gostávamos de tocar o papel, manejar as folhas, sentir-lhes a textura, o olor da tinta.

Aquilo possuía vida, densidade, tinha a cara, o cheiro e a fala do povo. Eu me sentia, repito, orgulhoso de fazer parte daquela engrenagem, apesar de alguns indícios de mordaça, da tácita censura que rondava a nossa expressão escrita.

Encaramos obstáculos, uma antipatia velada, subjacente, rancores, ímpetos de ranço e prepotência, reprimendas. Mas, com a alegria com que os passarinhos anunciam cada raiar do sol, não emudecemos, tecemos nossa teia verbal, vencemos a intolerância, a ferocidade e o cerco das hienas.

Hoje tudo está modificado. Vivenciamos a hegemonia dos portais eletrônicos, dos sites, das redes sociais e da blogosfera. Jornalistas outrora assalariados, dançando conforme a música que os patrões tocavam, sem tanto crédito nem opinião própria, agora são donos das suas vozes, adquiriram autonomia para dizer o que querem ou aquilo que lhes convém.

Como está na moda falar, são empreendedores, chefes de si mesmos. Não todos, pois ainda há aqueles sob a regência do patronato, contudo grande parcela é autossuficiente. Em meio a esses, talvez em número expressivo, há homens e mulheres admiráveis, dignos de respeito.

Vejo no mister de jornalista, como em poucos outros, uma paixão e um glamour típicos. É aí que muitos, literalmente, dão o sangue pela missão de informar. Tornam o público ciente dos acontecimentos nas mais diversas esferas da sociedade, rompendo a barreira do medo e da mordaça.

Nunca fui nem me pretendi jornalista, mas tive a oportunidade de trabalhar e interagir com admiráveis pessoas desse ramo, quando o sangue e a tinta (no tempo da tinta) corriam pelas veias expostas do homem de imprensa. Desse universo advém todo o seu penar e a sua delícia, o seu torpor e o seu ópio.

Pouca coisa lhes importa mais do que isso. Até eu, na época dos impressos, lembro de que várias vezes, movido por aquela sensação do dever cumprido, não fui para casa não sem antes passar pela oficina e pôr o meu exemplar debaixo do braço.

Sentia-me atraído pela sala de impressão, gostava da voz metálica da rotativa, daquele matraquear que geralmente se estendia pela madrugada. Só depois, portanto, eu deixava a oficina com o sentimento de que fizera a minha parte, satisfeito com a crônica, o conto ou poema ali gravado.

O jornal em papel era uma espécie de viajante do tempo que noticiava e que era notícia. Quantos homens e mulheres não se uniram e se deixaram por meio de suas folhas; quantas carreiras não foram construídas e arruinadas ao longo do seu expediente e curso. Havia em sua esteira factual um ciclo de apogeu e debacle, mortes e nascimentos, otimismo e desesperança. Entre outros veículos, a mídia escrita e impressa era a mais charmosa, romântica e sedutora.

Oito e dez. Dia nublado, aspergido por uma suave garoa. Bateu-me esta saudade do papel. Penso que num domingo assim, antes de provarmos o leite e o pão, estaríamos à mesa lendo um jornal impresso.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Fabiano diz:

    Genial !Excelente reflexão!

    • Marcos Ferreira diz:

      Obrigado pela leitura e comentário, meu caro Fabiano. Um forte abraço e uma ótima semana para você. Próximo domingo, neste mesmo espaço, a gente se reencontra.

  2. Magno diz:

    Nosso Machado de Assis mossoroense. Eu lia sua crônica aos domingos. Também li sua passagem pela revista. Vi sua entrevista recente e vi que está ou teve depressão. Depressão é ruim, poeta. Angustiante, né? Vi na entrevista certo arrependimento. Arrependimento é bom, poeta. Ruim quando vem muito tarde, depois de ter perdido pessoas. Mas muitos estão vivos. E vi também você falando que se reconciliou com alguns. É, poeta, acontece. Isso é da vida. Existe muita injustiça por aí e justiça também. Espero que você esteja bem. Bola pra frente. A cidade não soube valorizar nosso Machado de Assis. Mas um dia vai valorizar. Valeu.

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Magno,
      Bom dia.
      O que posso dizer de tão instigantes e gratificantes palavras? Sua leitura comentário me honram. Muito obrigado.
      Forte abraço!

  3. Simone Martins diz:

    “Saudades do Papel” nos remete com muita maestria àquela época do jornal impresso. Impressionante a riqueza de detalhes com que Marcos nós faz sentir até o cheirinho do café e do pãozinho quentinho, acompanhamentos imprescindíveis à leitura do jornal à época. Aplauso a esse grande escritor Marcos Ferreira!

  4. Francisco Nolasco diz:

    Quantas saudades, Marcos!
    Isso não é uma crônica, é uma fratura exposta é sangue vivo.
    Oportunamente EXCELENTE!

    • Marcos Ferreira diz:

      Meu caro Poeta Francisco Nolasco,
      Muito obrigado pelo comentário e estímulo.
      Grande abraço e até o próximo domingo.

  5. Marcos diz:

    Grande Marcão, Grande poeta, sempre com belas e bem colocadas palavras.
    Parabéns.

    • Marcos Ferreira diz:

      Muito obrigado, meu xará.
      Espero contar com sua presença neste espaço mais vezes.
      Forte abraço e uma ótima semana para você.

  6. VANDA MARIA JACINTO diz:

    Boa noite, Marcos!

    Linda e reflexiva crônica!

    Essa tua saudade também é minha…

    Abraços

  7. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    A crônica do nosso preta e escritor neste domingo, basicamente se resume numa Sessão.de..reminiscencias do papel SÓCIO/POLITICO das letras em papel impresso durante um certo perigo da historia, mais precisamente a partir de GUTEMBERG.

    O Papiro.. digamos mossoroense, assim como em outras épocas e espacos geográficos, exerceu no País de Mossoró, larga e palpável influência cultural e política, tendo no Jornal o MOSSOROENSE,. Exemplo de obstinada sobrevivência no campo da informação e das letras na Terra de Santa Luzia.

    Com a maestria de sempre, MARCOS FERREIRA neste nublado e chuvoso domingo, nos brinda com seu aprendizado profissional e sua experiência pessoal, mormente atuando na GAZETA DO OESTE, REVISTA PAPANGU dentre outros impressos que levavam a população, desde informações policiais, políticas, sociais, econômicas, crônicas de toda ordem e até material de fundo poético.!!

    Obrigado Caro Marcos Ferreira por mais uma aula, singela e magna aula do ato de escrever!!!

    Um baraco
    FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO.
    OAB/RN. 7318

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Fransueldo Vieira,
      É sempre muito bom e encorajador contar com sua leitura e importantes feedbacks neste prestigiado ambiente de ideias, arte e cultura.
      Até o próximo domingo e um forte abraço.

  8. Rocha Neto diz:

    O que estar no papel permanece para sempre, nossa memória deixa guardado num arquivo que o tempo não destrói facilmente, é uma pena que a modernidade da midia eletrônica e redes sociais tenha conseguido acabar com a nossa tesão pela leitura exposta no papel, até o cheiro do papel jornal as vezes encharcado de tinta responsável pelas letras e fotos, nos deixam saudosistas. Quantas pessoas tinham suas vaidades aguçadas ao vê-se estampado em qualquer página de um jornal, coisa que não acontece mais, pois hoje com o toque de im dedo a foto some, tudo tá diferente. Tudo parece película de filme que passa e que não retorna. Modernidade é coisa boa ? Sim. Só que en certos setores de atividades torna-se maléfica. E acabar com o jornal escrito em papel, foi e é uma perda irreparável. Que pena, amigo Marcos.
    Mais uma vez, sou-lhe grato pelo rico texto produzido com detalhes da história que nenhum de nós desejava-mos ser real.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu caro Rocha Neto,
      Bom dia.
      Sinto-me feliz que minha crônica saudosista tenha encontrado afinidade com o seu modo de enxergar esse tema acerca da inviabilidade e desaparecimento dos veículos impressos. Sem, contudo, desprezarmos os novos meios e oportunidades de comunicação e interação. Desde já, permita-me a pretensão, conto com sua leitura para o próximo domingo.
      Forte abraço!

  9. Misherlany Gouthier diz:

    Marcos Ferreira é escritor de primeira grandeza. Sua prosa, aua poesia, diz muito de sua formação literária, tendo em vista que leu das simples às famosas obras em todos os estilo. Versátil, arrojado, enobrece a todos com sua produção e também com a amizade. Um marco da nossa história literária. Sempre avante, Marcos Ferreira!!!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezado Misherlany,
      Muitíssimo grato por suas palavras, por seu depoimento que nos faz sentir que escrever, sim, vale a pena. Você é um exemplo dessa perseverança e entrega ao mister da escrita através de sua rica e substancial obra no âmbito da genealogia.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  10. Magno diz:

    Obrigado, Marcos, por me responder. Amigo, passei um período em Mossoró em que lhe acompanhei e também acompanhei os poetas e cronistas daquela época, todos de grande qualidade literária. Dê-me notícias de Líria Nogueira, Antônio Alvino e Mário Gerson? Eram grandes autores e excelentes cronistas, como você sabe. Eles também colaboraram no caderno à época. Aproveitando a oportunidade, pergunto por um poeta daí, um dos maiores do RN, Jomar Rêgo. Por onde anda ele? Tenho um livro de sonetos reunidos dele. Que grandiosidade de poesia! Um forte abraço e fico grato se você ou Misherlany Gouthier me der notícias desses nomes, se ainda escrevem. Eram constantes na colaboração.

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu caro Magno,
      Bom dia.
      É uma satisfação, além de me sentir grandemente honrado por sua opinião acerca dos meus escritos, responder aos seus comentários sempre tão estimulantes. Embora a comparação com o inigualável bruxo do Cosme Velho me faça tremer nas bases. É muita responsabilidade. Quanto às pessoas citadas por você, com as quais interagi no passado, não tenho mais notícias de seus paradeiros, exceto por Líria Nogueira e Antônio Alvino, que sei apenas que residem fora de Mossoró, mas ainda no RN. Por uma série de fatores, percalços, adversidades, passei vários anos divorciado dos meios literários e intelectuais de Mossoró. Estou retornando agora, um passo de cada vez. Sobre você, se julgar conveniente, gostaria de receber mais informações, pois minha memória ainda não lhe localizou no tempo, posto que nem sei seu sobrenome. Segue meu e-mail para contato: escritormarcosferreira@gmail.com.
      Atenciosamente,
      Marcos Ferreira.

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