• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 25/11/2012 - 07:12h

O tempo passa e eu não vejo:durmo novo e acordo velho

Por Honório de Medeiros

Seu ‘Antônio de Luzia’, oitenta e seis anos, sentado em sua cadeira de balanço, na calçada de sua casa, no Sítio Canto, em Martins, é o próprio símbolo da passagem inalterável das manhãs, tardes, noites, madrugadas. Do ritmo lento dos dias que se sucedem bucólicos, tais e quais as contas debulhadas do rosário de ‘Sinhá’, oitenta e poucos não admitidos, deslizam por entre seus dedos, à hora do ângelus, enquanto seu pensamento vagueia nos limites de sua circunstância, e nada escapa do seu olhar dardejante e de seus ouvidos “de tuberculoso”, como me confidencia ela.

Pergunto a Seu Antônio acerca das coisas que estão mudando mundo afora, em uma rapidez vertiginosa, impossível de serem acompanhadas.

Lembro a ele a chegada do homem na Lua, o computador, o celular… Ele fica calado um bocado de tempo.

Quando penso que esqueceu o assunto, ergue um pouco o braço e aponta com o dedo um passante, quebra o silêncio do final-de-tarde e me diz: “desde que o mundo é mundo, podem as coisas ter mudado, mas o homem, meu filho, é o mesmo de sempre”.

“Quando eu era de menino para rapaz”, continua, “pensava que as pessoas lá fora eram diferentes. Viajei, corri légua, vi e ouvi muitas coisas que eu prefiro esquecer, e voltei. Fico comparando o homem que vive lá fora com o homem que vive aqui, e não vejo diferença. Lá se mata, como aqui; lá se bebe, como aqui; lá se trai, como aqui; lá se rouba, como aqui. Tudo que existe lá fora, maior, existe aqui, menor”.

Fez-se silêncio, novamente, durante algum tempo. “Eu às vezes penso” prosseguiu, “que tanto faz como tanto fez, o homem se engana demais com as coisas, é como a roupa que a mulher veste: pode ser de qualquer tipo, mas ela é sempre a mesma”.

E, depois de beber um gole de café, arrematou: “lá fora o tempo passa e eu não vejo: durmo novo e acordo velho; aqui, eu vejo que o tempo não passa: faz uma eternidade que estou vivo!”.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. José Lima Dias Júnior diz:

    Prezado Carlos,

    Mais uma vez fico encantado com as crônicas do professor Honório de Medeiros. A forma como escreve é poética. Submete o leitor à ação de encanto, deslumbramento. Assim, percebe-se a boa qualidade do que se vê.

    Prof. Lima Júnior

  2. Marcos Pinto. diz:

    Nas paralelas da vida os horizontes de vida muitas vezes apresentam incríveis similaridades. As contagiantes descrições do Sr. ANTONIO DE LUZIA, da cidade de Martins-RN, fez com a minha retina da saudade emergisse, como numa fita de cinema, imagens e diálogos encetados por outro ANTONIO DE LUZIA – O meu saudoso conterrâneo e parente. Antigo componente da Banda de Música Municipal de minha amada cidade natal Apodi, era, por todo,s admirado e querido. Gozava de largo círculo de amizade e de admirável reputação. Conhecí-o já idoso. Representava uma geografia pictórica para meus olhos de menino sertanejo,tangedor de cabras, comedor de cuscuz cozido à moda antiga, acondicionado em prato de ágata, imprensado em forma arredondada, cujo prato era posto sobre a boca de uma panela de barro em processo de adiantado cozimento do feijão, cujo bafo/vapor quente cozinhava rapidamente o cuscuz, exalando um cheiro apetitoso de milho zarolho. Sêo ANTONIO DE LUZIA DE PURANA era aquele tipo de homem de moral inatacável, se reencontrando todos os dias com a simplicidade dos dias do seu mundo, dias ásperos, sofridos e obscuros, mas vividos com a consciência tranquila, porque não tinha ambições nem inveja da vida de ninguém. Apesar do perene assédio das dificuldades, era um homem animado pelo entusiasmo das iniciativas. Os poucos flocos dos seus cabelos brancos denunciavam a maturidade da semente do viver. Era eu o menino admirador e comensal de suas gostosas cocadas. Presenciei, muitas vezes, coando o café torrado e moído em casa, em uma rústica panelinha de barro. Logo após, acocorava-se junto às trempes para beber o café e afugentar o frio invernal. Protagonizou fatos curiosos, alguns até com colorido anedótico. SAUDADES do meu ANTONIO DE LUZIA ….

  3. Nilson Gurgel Fernandes diz:

    Caro Carlos;
    É sempre um grande prazer ler o primo Chico Honório, como chamava Ritinha, ainda mais recheado do cuscuz de milho zarolho cozinhado no bafo do feijão, rebatido com uma xícara grande de café torrado em casa no caco de barro de Marcos Pinto. Foi uma viagem para mim amigos, aliás, ultimamente descobri que o que vale na vida da gente é o passado, pois é lá onde estão todos os eventos da nossa existência e como não posso reclamar dela, ativo minhas lembranças. É claro que o futuro continua muito importante, mas para mim que sou jovem há bastante tempo (velho nunca serei) ele será só um companheiro que irá me produzir passados para eu possa olhar para trás e sonhar, devanear, lembrar amores e amigos, estes o maior patrimônio do ser humano. Desculpem amigos, não é que não sonhe mais, mas aprendi a olhar o passado e me deleitar com ele. Na oportunidade, encerro aproveitando para agradecer à todos familiares, amigos, amores e outros que me ajudaram a construir o passado que vivi e que ainda, com certeza, vou viver.
    Nilson

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.