Por Marcos Ferreira
Quinta-feira passada, 31 de outubro, dia consagrado às míticas bruxas do planeta inteiro, topei com uma jovem senhora em companhia de uma menininha no semáforo do Cemitério São Sebastião. Sim, outra vez esse recorte da cidade é o palco de um lastimável quadro social. Tais retratos dessa ordem, todavia, são invisíveis aos olhos de um monte de pessoas convictas de que não têm nada a ver com a miséria desses coitados que enfeiam o belo e auspicioso País de Mossoró desde sempre.
Deparei-me com essa situação por volta das três da tarde. A mulher e a criança, apesar de malvestidas e maltratadas pelas circunstâncias que enfrentam, exibiam uma beleza física subjacente. A garotinha, talvez com quatro anos de idade, estava nos braços da mãe. Esta, quando o sinal ficava vermelho, aproximava-se das janelas dos carros com um recipiente de plástico oferecendo uma iguaria que todos nós conhecemos como paçoquinha. Raramente um motorista ou outro baixava o vidro do automóvel para adquirir a paçoca ou apenas dar algum trocadinho à vendedora.
Parei minha moto na frente do São Sebastião, pendurei o capacete no guidom, abri minha carteira e peguei uns cinco reais em moedas. Eu já estava acabando de atravessar a rua para entregar as moedinhas àquela desconhecida, decerto mãe solteira, quando ela se posicionou ao lado da janela de um sedã azul da marca BMW. Em seguida o condutor estirou o braço para fora do veículo e apalpou os seios da mulher por entre o decote do vestido, diante da criança. Fiquei desconcertado.
Não demorou e o sinal ficou verde, o sujeito entregou uma cédula não sei de quanto à vendedora de paçoquinha e seguiu viagem. Maldito dinheiro aquele! Maldito elemento que se aproveita da miséria de outrem para satisfazer uma pulsão sexual! Quantas vezes esse indivíduo já não terá feito isso com outras mulheres carentes e desvalidas por aí, nos semáforos de Mossoró? Não faço ideia.
Nesse instante as minhas pernas ficaram bambas, vi-me estarrecido, e um sentimento de impotente revolta se apoderou de mim. Respirei fundo, os carros rumavam para um lado e outro e me aproximei daqueles dois seres (mãe e filha) sobre o canteiro. A mulher, notando a minha presença, pareceu-me um tanto surpresa com o fato de que alguém a pé viesse em sua direção. Ainda assim, quem sabe receosa, encarou-me e ofereceu o que tinha no recipiente de plástico transparente.
Notei que ainda havia em seu semblante um aspecto de constrangimento. Não duvido de que ela tenha imaginado que testemunhei o que acontecera um minuto antes. “Boa tarde. O senhor quer paçoquinha? Custa só dois reais. Compre pelo menos uma para me ajudar. Eu sou viúva; o meu marido era viciado em crack, estava devendo na boca de fumo e foi morto por um traficante nos Teimosos”, disse-me assim como se tivesse aquela história dramática ensaiada na ponta da língua.
Sobre o final do canteiro da Avenida Augusto Severo, enquanto os carros paravam no sinal vermelho e logo após seguiam seus destinos, travei um breve diálogo com ela, depositei em sua mão pequena quantia e revelei que eu não tinha interesse nas paçocas, mas que aceitasse as moedas porque o meu intuito (embora com um valor bem pequeno) era tão somente o de ajudá-la. Estava perante mim uma morena clara de olhos tristes, cabelo longo, corpo franzino e bem-conformado. A filha não se parecia com a mãe, pois se tratava de uma menina de cabelos meio loiros e olhos esverdeados. Deduzi, então, que herdara as feições do pai, morto pelo traficante.
Na faixa dos trinta anos de idade, contou-me que hoje mora com a mãe idosa na Favela do Cachorro Assado, onde também existe uma boca de fumo perto do barraco que ela e a filha habitam com uma irmã mais velha e outras duas crianças. Compreendi que nossa conversa precisava ser curta, pois a vendedora de paçoquinhas estava deixando de oferecer suas iguarias enquanto falava comigo.
Ela me agradeceu, disse “Deus proteja o senhor” e eu fui embora contrariado com aquele motorista vil, sem compaixão. Torço mesmo que ele e nenhum outro volte a praticar esse tipo de patifaria, de absoluta falta de humanidade, contra aquela pobre mulher. Ainda mais aos olhos da uma criança inocente.
Esse tipo de coisa, que devemos repudiar com total veemência, é a cara de Mossoró. Pois nosso município, sempre coberto por maquiagem publicitária, vira as costas para um sem-número de cidadãos miseráveis.
Marcos Ferreira é escritor
Texto dificil de ser digerido, e não pela usabilidade linguística que você domina, mas pela crueldade da sociedade que ele tão bem expõe. Na mão assediadora daquele motorista estão as nossas mãos pilatinas, nosso dedo que aperta a urna e elege os fazedores de políticas, nosso pé que acelera a máquina para longe da humanidade. Obrigado por ter descido da moto.
Parabéns,muito triste, mais é o espelho de uma burguesia sem caráter dentro de uma sociedade podre.
Muito triste, mais é o espelho de uma burguesia sem caráter dentro de uma sociedade podre.
Sempre faço isto no sinal do ferro de engomar como dizem, faço satisfeita pq sei que estão ganhando o seu pão de cada dia. Como disse isso é desumano e cruel, mas pode ter certeza que Deus toma todas as providências, eu tenho certeza.
Fico indignada com todo tipo de abuso! Quem os pratica não está nem aí; diverte-se com o ato; o que me deixa enojada. Os abusadores são frios e oportunistas; o público-alvo deles, muitas vezes, são crianças; o que torna ainda mais aviltante a situação de abuso. Essas pessoas em vulnerabilidade social são agredidas pela vida e por esses tipos que representam a escória da sociedade! Que bom que ainda existem pessoas com sensibilidade para perceberem o que acontece no ambiente, como você, nobre escritor. Você expressa com sentimento e mostra que ser humano é também estar atento a essas questões. Ainda lembro de uma crônica sobre uma menina que estava do lado de fora de um supermercado e que você, além de ajudá-la, buscou conversar com ela. Sempre lembro de algo que acontece comigo: na praça que faço caminhada, tem uma senhora muito triste, que caminha por orientação médica, como forma de atenuar a tristeza pela morte de um filho, adulto, depois de muito sofrimento com leucemia. Sinto-me no dever de falar com pessoas tristes; ela está muito fechada na dor. Cumprimento-a sempre. Na última semana ela já estava mais receptiva e eu puxei conversa e ela se abriu. Chorou. Abracei-a (perguntei se podia) e agora estamos nos comunicando em rede social! Tem dias que nem caminho tanto pois já fiz várias amizades. Todos carregam problemas e tristezas e devemos ser mais gentis! O mundo já é muito hostil. Não faço isso pra ser popular. Gosto de gente!
Infelizmente cenas como essa, são vistas por muita gente, que por medo ou por não se incomodar por tratar-se de uma mulher indefesa deixam de reagir. Eu faço parte de um grupo que chamado Irmãos da Rua RN, onde alimentamos aproximadamente 350 moradores de rua todas as segundas feiras em Natal, e sempre ouvimos relatos de abusos dessa natureza.
Artigo objetivo, mas cheio de denúncias. Lembrei-me do livro Os Miseráveis, e da vida difícil de Fantini,.que teve que se prostituir para ajudar sua filha.
De sorte que, apesar de raramente,.pode aparecer um Jean Valjan.
Me embarga a voz e trás tristeza imediata esse relato, mesmo sabendo que isso acontece cotidianamente. Confesso que sinto vontade de descrer na raça humana, mas felizmente volto a crer minimamente que ainda existe amor e fraternidade de pessoas como você, que igualmente se indigna e denuncia esses cretinos.