De longe chegava a voz de Altemar Dutra cantando “Tudo de Mim”, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Quem estaria escutando essa música, no último dia do ano, quando já era noite fechada e faltava pouco para os fogos subirem aos céus?
Enquanto desfrutávamos da nossa solidão a dois, preparávamos, a quatro mãos, nossa ceia. Eu e ela. Os meninos, ainda os chamamos assim, já tinham partido, para muito longe. Ficamos nós, aqueles cujas raízes são fundas demais para serem arrancadas.
Eles se foram, são o futuro, e, nós, cada dia mais, o passado.
Ela nota minha melancolia. Disfarço. Brinco. Não resolve. Não consigo mais engana-la. São muito anos de cumplicidade. Falo-lhe de Altemar Dutra, de quando o conheci ainda praticamente adolescente, uma noite, no “Casarão”, e emendo com uma confissão, dizendo-lhe que minha tristeza não vem da batida do passado na porta do meu coração.
Não é isso, digo-lhe. É a tristeza de quem sente que algo precioso está se perdendo, e não voltará. Estou, agora, falando acerca da maravilhosa letra da música que Altemar Dutra canta e que ouvimos vinda de longe, de alguma das casas que cercam nosso prédio, elas mesmas, as casas, antigas, desaparecendo para cederem seus lugares a prédios modernos, repletos de vidros e ausentes de história.
Essas músicas sobrevivem como espasmos e me quedo surpreso quando as escuto em algum lugar, por insistirem em abrir espaço, vindas do passado, em um futuro tão diferente. Como quando escutei uma melodia de Chiquinha Gonzaga, em um celular portado por uma adolescente no shopping onde almoçávamos.
Altemar Dutra segue desaparecendo lentamente da nossa memória, e fatos como esse sempre me lembram amigos que se foram, ao longo do tempo, de nossas vidas. Amigos que se afastam, aqueles velhos amigos, com eles desaparecem “a testemunha e o comentarista de milhares de lembranças compartilhadas, fiapos de reminiscências comuns que se desvaneceriam“(*). “All those moments will be lost in time, like tears in rain“(Todos esses momentos serão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva**).
Assim, concluo, enquanto ela põe a mesa, morre aquilo que o homem constrói, apaga-se, desaparece na neblina do tempo, pois o futuro e seu filho dileto, o esquecimento, algoz de todas essas lembranças, não se compadece do quanto já foi construído em todos os lugares e tempos. É preciso que chegue o novo, que se vá o passado.
Eu me calo. Muito antes, já se calara Altemar Dutra. Decerto, quem o escutava, já se aproximando do inverno da vida, resolveu dormir. Mal sabe ele que lhe fiz um brinde, com um copo de água, quando vinha a madrugada.
Para ele, Altemar Dutra, Evaldo Gouveia e Jair Amorim.
* Hereges, Leonardo Padura.
** O replicante Roy Batty, em “Blade Runner“.
Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN.
Depois eu leio.
Agora tô assistindo um filme na Amazon prime; Reação Em Cadeia.
Num perdam.
Bom dia se possível for.
Belo resgate musical. Lembro-me das manhãs de domingo, nas quais escutava músicas dessa natureza, vindo lá da casa de seu Cesário.
Um abraço, meu amigo.
VALEU CARA.
Trouxe Evaldo Gouveia ao Rio Grande do Norte. Tem foto dele comigo e Castilho, na parede de Cajuais da Serra. Praticamente cego, ele me disse que não chorava mais. Acompanhado de uma bela loura, que era companheira e guia. Cantou à capela o Tango para Tereza. “…o tango na vitrola está chegando ao fim,/ a luz do cabaré já se apagou em mim”./
Ele disse também que devia a Jair Amorim a popularização da sua música, cujas letras do parceiro a tornaram conhecida e famosa.