Por Marcos Ferreira
Já bati nessa tecla. Creio que umas três ou quatro vezes. Sim, escrevi sobre este velho tema, incômodo retrato que muitos fingem que não existe, que não enxergamos. Miopia esta, cegueira social, que se verifica com menor gravidade ou exceção quando estamos às portas do Natal ou às vésperas do ano-novo. Aí um cristão ou outro amolece o pétreo coração e estende a mão aos necessitados.
Noite dessas, debaixo de uma chuvarada, avistei aquele farrapo humano com a filha miúda sob a rala folhagem das árvores do canteiro defronte ao Cemitério São Sebastião. A mulher se aventurava a pedir algum tipo de auxílio aos motoristas em seus carros de luxo quando o semáforo vermelhava. Dificilmente um condutor baixava a janela para ofertar um trocadinho ou migalha de comida àquela desvalida tragada pela desigualdade social que grassa por este suposto país do futebol, pátria de beócios podres de ricos que se dão ao acinte de comer bife com pó de outro.
“Ah, mas os imbecis podres de ricos não têm nada a ver com a desigualdade social desta pátria de contrastes gritantes”. Alguém dirá algo assim com o nariz empinado. Nariz merecedor de um punho com cinco dedos bem fechados. E reparem que não sou propenso a esse tipo de rompante. Bom, mas os boçais não precisam afrontar nem fazer pouco-caso das barrigas que mendigam um pedaço de pão.
Há quem diga, imaginem só, que esses indivíduos em situação de rua ou abaixo da linha de miséria estão nessa vida porque querem ou, pior ainda, porque fizeram por merecer. Talvez alguns indivíduos com tendências autodestrutivas afundem na sarjeta por livre e espontânea vontade, contudo não é essa a realidade dos milhões de brasileiros que passam fome nesta nação, gente sem um teto, dormindo sobre bancos de praça, sob marquises e viadutos. Não, senhoras e senhores bem-nascidos, bem de vida. Ninguém, em sã consciência, degenera e escolhe o fundo do poço.
— Mas a culpa não é dos nossos craques.
Todavia não custa nada, e se custa isso representa não mais que uma merreca, que esses senhores futebolistas podres de ricos, insensíveis à penúria dos brasileiros (salvo exceções) sejam menos escrotos e assumam um mínimo papel no combate à miséria que degrada tantos indivíduos que, inclusive, os enxergam como ídolos, como mitos. É isto. Grande parte do povo idolatra quem os despreza.
Então, por volta das vinte horas, sob a chuva, lá estava a jovem mãe com sua filha pequenina, ambas expostas ao frio e à humilhação que a aguda pobreza as submetia. Um motociclista parou a moto, desceu e entregou uma cédula de não sei quanto à mendiga. O semáforo ficou verde logo em seguida e alguém num carrão chique atrás do motociclista buzinou todo irritado porque a moto do jovem estava à sua frente obstruindo a passagem. O motorista deu ré no possante e foi embora cantando pneus. Não duvido de que seu desejo fosse o de atropelar o rapaz benfeitor.
Portanto, senhoras e senhores, eu não sei fazer de conta que essas histórias não acontecem diariamente por aí, bem debaixo dos nossos narizes empinados, e fingir que nada estou enxergando. Da minha parte, como eu não posso fazer muita coisa em favor dessas pessoas, exponho aqui, embora para o desgosto de poucos leitores, pois há exceções, esse incômodo retrato da vida como ela é.
Marcos Ferreira é escritor
Excelente e magistral fotografia em letras afiadas
Além de falta de amor ao próximo, ver no outro um filho de Deus e, portanto, irmão, falta empatia: colocar-se no lugar do outro ou imaginar-se em situação idêntica. A maioria não tem tempo nem interesse em olhar esse quadro bastante incômodo; é pedra no sapato; atrapalha a pisada! Além dos indiferentes existem os muito incomodados! Pessoas que não estão nem aí. Não acredito que os miseráveis estão nessa situação por opção. Quem, podendo viver de forma confortável, optaria em comer restos e viver no desconforto? É fácil dizer que estão assim por que querem e livrar-se de algum tipo de culpa. Sim, culpa. Quantas vezes o desperdício que poderia alimentar alguns vai pro lixo e esses pobres vão lá catar? Sinto uma espécie de tristeza nas noites de Natal e Ano Novo vendo a montanha de comida que as pessoas colocam em suas mesas e, muitas vezes, mais da metade não é consumida! Esse final de ano combinamos não trocar presentes; só as crianças receberam presentes. Fizemos doações para instituições. Acho que foi muito mais efetivo fazer sem receber retorno. A gente precisa ter um olhar mais humano pra outras pessoas! Às vezes não falta alimento físico mas precisa-se de carinho e alguém que o escute. O Ano só será realmente Novo se começarmos a promover mudanças interiores; sermos mais verdadeiros e pacientes com o outro e menos artificiais. Poderemos nos tornar agentes de mudança! Assim penso eu e concordo com o retrato colocado hoje!
Geralmente as pessoa sentem dores, querem ajuda até. Porém, quando a dor é dos outros, fingem não ver, não ouvir e assim acabam na sua individualidade, vivendo num narcisismo social que torna não só os outros invisíveis, mas inexistentes!
Esse é infelizmente o retrato social tenebroso em que vivemos. Os invisíveis…
“A calçada não é cama, não é berço não é nada/ Nada mais nos faz humanos sem afeto/
E o medo é um abraço tão distante de quem fica” Música: “Jornais” Nenhum de Nós
Vivemos numa sociedade líquida, supérflua em quase todos os sentidos e banalizada em seus valores morais. O que nos incomoda é inversamente proporcional ao que deveria ser, de fato, a nossa verdadeira preocupação como cidadão. Esquecemo-nos, pois, que estamos interligados, que aquilo que atinge ao meu próximo fatalmente irá me afetar logo mais lá na frente. Porém, a cegueira do “não sou responsável pelo que acontece coletivamente” é o resultado da individualização gerada pelo medo de perdemos o que temos.