Por Marcos Ferreira
Ontem, cerca de meio-dia, lá estava ela no canteiro da João da Escóssia, logradouro este que se tornou uma espécie de Quinta Avenida de Mossoró. Mulher jovem e franzina, orçando pelos vinte anos, pele clara, olhos grandes e tristes; vestígios de uma adolescência pobre ainda perceptíveis no rosto assustadiço. Além desses aspectos, do cabelo curto e do corpo longilíneo, exibia a barriga de uns sete meses de gestação. Talvez até já saiba o sexo da criança, ou das crianças.
A exemplo de outros que se arriscam no comércio itinerante daquela rua, ela vendia garrafinhas de água mineral no semáforo. Tinha ali do lado, à pouca sombra de uma árvore, um recipiente de isopor. Por estar sozinha, é possível que seja mais uma futura mãe solteira. Considerei-a novata naquele modelo de “empreendedorismo”, como apregoa a política criminosa do Grande Percevejo.
Fico pensando no que leva uma tão jovem mulher em estado interessante (grávida) a se submeter a tal expediente, exposta a uma temperatura e condições tão adversas. Naquela fase, àquela altura da gravidez, fosse outra sua a realidade familiar e, sobretudo, econômica, ela estaria em casa, resguardada.
Fui e voltei da residência de Natália, minha noiva, e nem na ida como na volta presenciei nenhum gentil motorista abaixar um vidro e adquirir uma daquelas garrafinhas d’água.
Eu, cujo transporte é uma moto, também não comprei. Mas aquilo (vai o lugar-comum) ficou martelando na minha cabeça. Quilômetros depois, pensei que poderia ter pegado uma garrafa, embora não fosse cômodo levá-la, posto que não tinha uma sacola, ainda menos uma mochila. Dar algum dinheiro a ela, como dei a alguns pedintes no semáforo, poderia constrangê-la, quiçá ofendê-la.
Não. De modo algum. Aquela futura mãe não estava ali a pedinchar. Não era mendiga. Não ao menos àquele instante. Digo isto porque, infelizmente, conheço um rapaz que fazia malabarismos com bastões de fogo no semáforo e hoje vive mendigando.
Decerto porque o preço do querosene (dos combustíveis, enfim) tornou-se absurdo. Já a moça tentava, através daquele “empreendedorismo” de centavos, obter recurso para si e para a vida, ou vidas, que carrega em seu ventre.
Preciso retornar à João da Escóssia e comprar a água da buchudinha. Senão não ficarei em paz com minha consciência. Sei que as coisas estão difíceis para a maior parte dos brasileiros, todavia (cada qual dentro das suas posses) podemos fazer algo mais pelas pessoas que se encontram, a exemplo daquela gestante, em condições tão vulneráveis. Amoleçamos os nossos corações empedernidos.
Sinto falta das entidades e pessoas caridosas de Mossoró. Em dezembro, ao contrário dos outros meses, existe toda uma publicidade das ações dos bons samaritanos. Ora não vejo, por exemplo, distribuição de cestas básicas em parte alguma desta urbe. Será que os necessitados só têm fome no período natalino? Ou, de maneira mais específica, na véspera da noite de Natal? Penso que essa caridade datada e ostentatória fere e desaponta o mais ilustre aniversariante do dia 25 de dezembro.
Pois é, o rapaz que fazia malabarismos com bastões de fogo agora pede esmolas nos sinais de trânsito, em meio a vários outros miseráveis. Trocou os bastões incendidos por um tosco cartaz de papelão com uma mensagem de súplica. É um moreno pequenino, trejeitoso, iletrado, de vinte e poucos anos, possivelmente oriundo de outra cidade nordestina. Criatura sem eira nem beira, como se diz.
Apesar disso, da lástima social e familiar, pois ele vive sozinho na terra de Santa Luzia, o malabarista é simpático, sempre propenso a sorrir. Sim, agradece os trocadinhos que recebe de mão piedosa com um grande sorriso, umas breves palavras que nunca compreendo e uma pequena mesura com a cabeça. Não tem onde morar. Algumas noites, quando não chove, o que é comum por aqui, ele dorme em bancos de praça, ao relento, ou sob marquises de lojas, nas calçadas do Centro.
Dói saber que certos indivíduos que se julgam ricos, ou que de fato o são, não raro tratam tais pessoas desprotegidas feito esse rapazinho malabarista com grosseria, hostilidade, intolerância, apenas em virtude de o pobre coitado lhes “importunar” com pedidos de auxílio. Aliás, a grosseria, a hostilidade e a intolerância parecem ser características dessas pessoas que imaginam ter o rei na barriga.
A intolerância, sobretudo esta, é mais exercitada e encontrável em nosso meio do que supomos. É algo que não atinge unicamente os mais precisados e desprotegidos. Vejam, acaso não saibam, o que ocorreu esta semana com o poeta Aluísio Barros, professor de literatura aposentado da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Aluísio foi objeto de denúncia à Polícia Ambiental porque seus galos têm o inadmissível hábito de cantar. Até parece piada, mas só parece.
Aluísio Barros se defendeu no Facebook:
“Imagine que o vizinho do outro lado da rua denunciou à Ambiental os meus galos por cumprirem o seu papel natural de fazer nascer a manhã. Vão prender os galos? Ou vão silenciá-los com chumbo, veneno ou pólvora? PS.: não sei o que fazer. Não sou bruto: sou poeta”. Enquanto isso, salvo exceções, existem pessoas que todos os dias estupram nossos ouvidos com músicas de péssima qualidade.
No meu caso, diferentemente do que ocorre com o vizinho intolerante de Aluísio, o canto dos galos é canção de alta voltagem poética. Gosto de ouvi-los, próximos ou distantes, a qualquer hora do dia ou madrugada, quando me encontro a escrever ao som dos pássaros, do coaxar dos sapos ou da sinfônica dos grilos. Há ainda os cães que latem ao redor, os gatos que se amam sem pudor nem discrição, dando notícia de sua inconfundível libido para quem quiser escutar e achar ruim.
Que tempos são estes, torno a indagar, em que cuspidores de microfone, que se vendem por astros e estrelas, seguem agredindo os nossos ouvidos com dejetos sonoros, estelionato musical comerciado por arte? Já os galos do poeta Aluísio Barros agora sofrem censura, têm o seu direito de cantar ameaçado. A intolerância mostra as garras e a poesia gregoriana dos galos virou caso de polícia.
Ofereço minha solidariedade a Aluísio, sobretudo aos seus cantores emplumados. Onde já se viu uma coisa dessas, senhoras e senhores? Galos sob o iminente risco de prisão, de serem banidos para longe do seu dono ou serem abatidos tão somente por desempenharem sua legítima função de cantar. Só mesmo no inacreditável País de Mossoró, cujo povo pacato e acolhedor repeliu o temido bando do fora da lei Lampião e, segundo a lenda, enterrou o cangaceiro Jararaca ainda vivo.
Torço que o vizinho incomodado do poeta amoleça o coração, e retire a queixa contra as referidas aves. Ao invés de perseguir esses bichos, proponho que ofereça alguma fraternidade aos cidadãos que procuram de algum modo sobreviver nos semáforos da João da Escóssia e de outros pontos da nossa província. Querer proibir que um galo cante é uma intolerância tão injustificável quanto ridícula.
Marcos Ferreira é escritor
Caro Marcos Ferreira, parabéns pelo triste retrato de nossa urbe que retrata também do Brasil.
Será que eu sou mesmo um idiota?
Dá parabéns por um triste retrato?
Ou será que o Nobre Cronista o fez tão bem?
Só espero que nos torne mais ” humanos “!
Pois humanos nos somos; e a nossa humanidade onde estará?
Obrigado mais uma vez!
Um abraçaço extensivo à Natália.
Meu caro Marcos Ferreira. Infelizmente, é do jeito que você disse: vivemos tempos de indiferença e intolerância.
Que Deus nos ajude.
Um forte abraço, amigo, e uma excelente semana. Que a senhora grávida possa encontrar dias melhores e os galos
do nosso poeta Aluísio Barros continuem a cantar.
A Origem.
Havia em Natal dois grandes cinemas. O Rio Grande é o Rex. Seu dono vivia dizendo que Mossoró jamais teria um igual.
Pois bem mexeu logo com com o tinhoso Jorge Albuquerque Pinto
E.e contratou um arquiteto da ” França ” para fazer o projeto. Todos os detalhes foram cuidadosamente realizados.
Ante sala, portas de incêndios, acústica bombonieres etc.
Pronto o prédio veio a grande pergunta: qual seria o nome do cinema?
Logo Seu Jorge teve a brilhante ideia.
O tal dono dos cinemas de Natal chamava-se Xixico como já disse, vivia debochando de Mossoró.
Decisão: Cinema Pax, tradução: Para Aporinhar Xixico!
Kkkkkk
Contada pelo Poeta Antônio Francisco
Bom dia.
Olá, Marcos!
Bom domingo!
Como sempre nós levando a reflexão…
Em relação ao comércio itinerante nos semáforos ou pedintes, fica complicado atender a todos… São tantos, que o jeito é se voltar para aquele que toca o seu coração. Não julgo a real necessidade de ninguém, pois acredito o quão sofrido é estar nessa situação. Sempre que posso, faço minha parte. Quanto aos galos do Aloísio…sem comentários… Só espero que continuem cantando “livremente”!
Abraços
Poeta Marcos Ferreira,
Uma pergunta se faz necessária: De onde vem essa capacidade de descrever tão bem o cotidiano?
Tudo que você relatou, nós presenciamos, mas nos passa despercebido, de tão comum!
Somente um ser tão sensível ao sofrimento alheio é capaz de detectar as injustiças sociais.
Sua capacidade de empatia se compara à de Chico Buarque, quando descreve o sofrimento dos favelados e das genis da vida, por meio de profundas composições.
Parabéns, Poeta!
A cada semana você se supera!
Em tempo: O vizinho reclamou da sinfonia dos galos, mas talvez deixe entrar em seu quarto as algazarras fabricadas pelo BBB.
Lastimável!
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada
[…] Conhecendo nosso medo
arrancam-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
Eduardo Alves da Costa.
Bom dia, MF.
Tua escrita, mais uma vez, dá visibilidade ao que muitos tentam não ver ou sentir, subindo, inutilmente, o vidro do carro.
Ando triste, tristinho, tristonho, pois os meus galinhos foram morar na casa de um amigo lá mais para baixo, nos caminhos do Rincão em busca do Rio Ivipanin. Contra a minha vontade. O vizinho do outro lado da outra rua agora está guardado pelo silêncio mortal da noite. Decerto, sente-se protegido pelas suásticas que, espantado, vejo ornando a sua calçada toda feitinha de pedrinhas portuguesas (ares europeus, diriam). Torço que um dia um de seus hóspedes se incomode com tais desenhos e também manifeste seu desagrado. Não seria crime ostentar suásticas?
Ficamos gratos pela escrita solidária.
O Sol haverá de subir, pois outros galos ainda resistem aqui nos Pintos.
Bons dias.
Estamos, Marcos, insensíveis ao que nos rodeia. A banalidade das coisas já se apropriou de nossos cotidianos e já se tornou normal ver, ouvir e nada fazer, especialmente, com relação às autoridades constituídas. É cômodo, para os gestores, não se envolverem “nos empreendimentos” dos mais necessitados. Se no farol o desempregado consegue sobreviver com o que arrecada, para que intervir e mudar essa rotina? Da mesma forma, a grávida – possivelmente sem o apoio do pai da criança – que consegue ir comprando seu sustento com a venda de suas garrafinhas de água, para que usar a máquina, constituir comissões, convocar as entidades filantrópicas, aprovar projetos e gastar os recursos do erário público? Há quinze anos, em algumas crônicas – publicadas no extinto jornal Gazeta do Oeste -, eu comentei sobre o o preenchimento dos espaços públicos pelos “flanelinhas” e por pessoas que haviam perdidos seus empregos, e estavam se aventurando na informalidade, vendendo produtos contrabandeados e de má qualidade, no centro da cidade, sem que as autoridades tomassem providências. O que vemos hoje? O leque aumentou. E para completar, essa “intimação” ao professor Aluísio Barros é de lascar! Vou dar um exemplo: aqui em frente à minha casa tem um espaço onde o proprietário, julgando-se ser o “dono da rua”, promove músicas ao vivo, praticamente todas as noites – com um som absurdamente alto -, sem ser incomodado pelas autoridades com intimação, etc. e tal. Ah, não foi por falta de denúncia. E o pior (ou melhor) é ouvir, do outro lado da linha, o policial dizendo que não pode fazer nada, pois é deslocada uma viatura para o local, quando lá chega solicita que diminua o volume dos decibéis, porém quando a viatura retorna para à base, o som volta a ser aumentado. E aí? Difícil, meu amigo. Vivemos tempos em que os valores e prioridades estão completamente enviesados. Dá saudade dos meus tempos de criança…
Belíssimo artigo. O texto nos mostra em escrita o que nossos olhos verem todos os dias, e pedimos e torcemos que as autoridade enxerguem e adotem providências que venham amenizar os seus efeitos.
Quanto a reclamação dos vizinhos “importunados” pelo cantar do galo, me veio em memória a petição do Advogado e Poeta Ronaldo Cunha Lima, ao buscar liberar um violão apreendido por suposta pertubação do sossego, intitulada de HABEAS PINHO, iniciada nesses termos:
“O instrumento do creme que se arrola
Nesse processo de contravenção
Não é faca, revólver ou pistola,
É simplesmente, Doutor, um violão”.
Uma situação triste que se tornou poética. Assim como esperamos que o canto do galo, sensibilize a Justiça e os que a mesma provocaram. E assim, o galo possa continuar cantando em liberdade.
Boa Noite!
Em Ivaporã-PR, em 21/06/21, um galo que cantava alto terminou indo a leilão e o dono teve que se conforma com os trocados pagos pelo arrematante.
Para resolver o caso de um galo são rápidos. Para descobrir o que fizeram com o COENTRO da licitação realizada pela CÂMARA MUNICIPAL DE MOSSORÓ, 16/12/20, que custou mais de 143 mil reais são lentos.
Só falta agora proibirem os passarinhos de anunciar a beleza de um novo dia.
No caso da gestante estar senhora sendo submetida a um esforço não condizente com a sua situação atual, algo tem que ser feito.
Cadê o serviço de assistência social da Prefeitura de Mossoró? Onde estão as vereadoras da bancada feminina?
Esta situação envergonha toda a cidade.
Parabéns pela crônica.
Você coloca a literatura a serviço do social.
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Excelente relato. Muito bom lê-lo do início ao fim. Apenas a discordância de que “Só mesmo no País de Mossoró (…)”. São vários os casos nos brasis afora de tal fato acontecer. É brasileiro, quiçá humano. Gratidão por compartilhar esse texto conosco.
Boa Noite, Marcos!
O seu relato, com detalhes precisos, descreve o nosso cruel cotidiano, que, muitas vezes, nos sensibiliza, mas que foge a nossa alçada pelo quantitativo, tornando-se impossível atender a todos! Quem dera dependesse de nós a resolução desse problema social, que tornou-se o cartão postal da maioria das cidades!
Um grande abraço!
Escritor Marcos Ferreira
Tempo negro de fome e intolerância. E pra fechar, cito a música do Belchior: “Eu era alegre como um rio/um bicho/um bando de pardais/ como um galo/quando havia/ quando havia galos/ noites e quintais…” Abraços poeta escritor, Marcos Ferreira.