Relembro o poeta Gonçalves Dias em “Juca Pirama” para proclamar: “Meninos, eu vi”. Testemunhei duas enchentes épicas em Mossoró. Dois quadros, duas visões.
Em uma delas fui desalojado pela enxurrada; de outra resultou meu alojamento, de forma indireta, numa paixão: o jornalismo.
Vou contar o primeiro caso. Depois, quem sabe, abordo o outro, acontecido em 1985.
Situo-me em 1974. Estou nos arrabaldes do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Centro de Mossoró. Assisto o rio Mossoró banhar lentamente a rua Jerônimo Rosado, escalar as escadarias do adro desse templo e ocupar nossa casa sem resistência.
Sua água barrenta e devastadora produzia cenas incomuns aos meus olhos infantis: Homens com calças arregaçadas, outras crianças a nado, caminhões ou simples carroças transportando móveis e picuás da vizinhança.
A chuva incessante que engordou o rio nos empurrou para fora com a força de quem manda, sem pedir licença. Um poder onipotente. Mesmo assim, a água que quase batia à cintura de muitos ali bem em frente, me divertia, sem que eu soubesse medir os estragos ou pressentir os desdobramentos da cheia.
Sapos apareciam aos montes, como se fora reprodução de uma das dez pragas do Egito. Multiplicavam-se aos milhares, fazendo do enorme quintal uma Normandia no Dia D, só para anfíbios. Uma cena grotesca que nunca mais vi se repetir.
Canoas e pequenas lanchas navegavam à nossa frente; o rádio ligado noticiava a ampliação territorial do rio Mossoró. Estávamos ilhados, acuados, a cada dia.
O burburinho na rua e o alagamento continuado não me afligiam. A imagem diluviana era acima de tudo encantadora à minha avaliação limitada. Cinematográfica. Estimulava a imaginação cheia de aventuras e super-heróis da TV e quadrinhos.
Ruas, praças e avenidas estavam transformadas num marzão. Uma via só. Fluvial. Quase amazônica.
Só me toquei do pior com a convocação final: “Arrume suas coisas. Amanhã cedinho a gente vai embora”. Partimos para nunca mais voltarmos àquele endereço.
Lá ficou uma parte de minha infância e inocência: a pequena pracinha de seu João Cantídio, nosso Colégio Dom Bosco a tão poucos passos.
Para trás o presépio de Maria de Uriel, miniatura bíblica cheia de vida em todo Natal; a casa acolhedora de dona Fefita e seus netos, todos meus amigos, que vez por outra me convocavam para tumultuar seu sossego.
A padaria de seu Eliseu Costa e dona Julita nunca mais seriam meu endereço de fim de tarde. Seus pães e bolos deliciosos, enrolados com técnica apurada em papel madeira, continuam em meus olhos, olfato e paladar. Memória sensorial.
As confrarias noturnas à calçada, com o tititi do dia, quase sempre vetadas à presença de crianças curiosas, continuam gravadas. As famílias pareciam uma só, sem o temor da violência urbana, sem as aflições psicossociais deste século XXI.
Vários nomes e lugares mantêm-se memorizados, outros se dispersaram com o tempo, mesmo que a imagem deles, ainda turva, pulule até hoje em minha mente.
Vejo o casal Izete-Raílton; Moisés dos Portões, padre Américo Simonetti e suas concorridas missas no Coração de Jesus; o tenente e delegado Clodoaldo Meira aboletado num Jeep aterrorizando quem teimava em jogar bola na área, pronto para picotar a pelota.
A senhora Júlia Menezes absorta; as irmãs Ilná e Alaíde Nascimento; minha “Maura” sempre loquaz, festiva e amante da prosa com Nadir Brasil e tantos amigos e amigas. A professora exemplar Dagmar Filgueira e a serenidade do senhor Trajano Filgueira.
O sítio “Pica-pau” no beiço do rio; o Cine Cid tão perto e a lenda de que em seu subsolo existia uma baleia. Com chuva ou sol, enchente ou não, o barulho que vinha de lá nos fazia acreditar nesse “Moby Dick” subterrâneo, enredo que caberia numa aventura escrita por Júlio Verne.
Por aquele pequeno portão gradeado de ferro da casa em que eu morava, de batente alto, soltei meu barquinho tosco, de papel. Vi-o flutuar nas águas por alguns minutos, até que desaparecesse.
Só muito tempo depois descobri que “navegar é preciso”. Minha nau frágil, não tripulada, era também esperança.
Buscava outro porto seguro além-mar.
Parabens, por me fazer lembrar desta Época.Neste Ano, como Representante de Medicamento, chegava á Mossoro no Dia que houve esta Cheia, foi realmente uma coisa assustadora. Prá começar ,tivemos que deixar nosso Carro no alto S. Manoel(posto do Ceguinho) Pegamos uma Canôa que nos deixou exatamente na porta do Grande hotel. Dai em Diante foi só presenciar todos esses fatos tão bem narrados por você. PARABENS PELO TRABALHO.
Que beleza!
Honório de Medeiros
Que beleza!
Honório de Medeiros
Muito grato pela publicação desse texto! Muito bom. Imagens históricas. Lembro-me!
Viajo no tempo… Me vejo como expectadora dessa foto, diante da calçada dos fundos da Drogaria Rio Grande, de onde fui “olhar a enchente”. Após as aulas no Colégio das Freiras, não pude mais voltar pra casa que ficava do outro lado do Alto de S. Manoel, no conjunto Walfredo Gurgel; tive que ficar na casa da minha avó, nas proximidades da praça do codó, pra onde três anos depois nos mudamos. Lembro-me bem desta paisagem.
Também disputava as missas com o Pe. Américo na capela do coração de Jesus. Diante de tantas lembranças, acho que deves lembrar também das “confrarias” na calçada de Pedro Aquino: Marcondes, Maxwell e Marcelo… de fronte a casa do então radialista Souza Luz (isso nos anos seguintes a este 1974)…
Aqui podemos dizer: Ah! tempo bom!!!!!!
Apesar de não ser contemporâneo e nem mossoroense o texto foi uma verdadeira fotografia em nossas mente. Parabéns!
Parabens pelo belíssimo texto que até para quem não presenciou a cena, traz as imagens deste fato como num filme.
Grande amigo Carlos, não há como não arrancar a página da saudade do mais recôndito do coração. Coincidentemente foi o ano em que aportei em Mossoró, imberbe e amatutado em meus 14 anos de idade. Também deslumbrrei-me com esse estranho espelho d’água que banhava o centro da cidade de forma assediosa. Residia em uma casa vizinho à do grande humanista Francisquinho Vasconcelos. A água não chegou a adentrar em nossa residência dado a mesma ter sido edificada em um plano mais elevado, mas, mesmo assim, a água ainda “beiçou” o batente que dava acesso ao quintal. Lembro-me do Sr. Gatinho (O que trouxe o bilhete de Lampião para o prefeito Rodolfo Fernandes) que residia defronte à praça da Redenção (Praça da União Caixeiral) tecendo comentários de outras grandes enchentes que atingiram o mesmo nível da enchente de 1974. Vivas à memória do velho alcáide DIX-HUIT ROSADO, que durante seus mandatos tricotomizou o rio Apodi-Mossoró, resolvendo de vez essa tormenta aquática.
Caro Carlos! Como você me fez também retornar à minha infancia tão sofrida, mas de bons momentos. Eu também víví os dois momentos de cheias do nosso rio mossoró.Morava com a minha mãe D. Maria Edite e meus nove irmãos(hoje oito), na rua Benício Filho, 65, Ilha de Santa Luzia, à esquerda de quem vem do centro da cidade. E tal como você, viví e sonhei, fantasiei, mas a realidade era outra completamente diferente do que eu via diante dos meus olhos. 1974 expulsos da nossa casa, nos abrigamos no hospital do salineiro, no Bom Jardim(hoje o PAM). em 1985, fomos para uma casa alugada no Planalto 13 de maio. Vida difícil, mas que me deixa muitas saudades! Obrigado por me fazer recordar.Abraços…