Por Rubens Lemos Filho
Tinha acabado de completar três anos de idade e de voltar ao Brasil quando um golpe sangrento derrubou e assassinou o presidente do Chile, Salvador Allende (na foto, de capacete, tentando resistir no Palácio de La Moneda).
Não lembro de nada.
Moramos em Santiago, meus pais e eu, de 1971 a 1973. Papai era monitor de jornalismo numa faculdade comunitária. Residíamos numa vila de exilados de vários países.
Nosso vizinho era o futuro famoso cineasta Sílvio Tendler, autor de documentários consagrados como os Anos JK e Jango.
Tendler está muito doente e paraplégico.
Ano passado, minha mãe lançou um livro baseado em cartas escritas para minha irmã, gerada no Chile e que estava em sua barrigona, quando voltamos. Na fila do lançamento, alguém que folheava seu exemplar antes do autógrafo me perguntou, espantado:
– Rapaz, você nunca me disse que esteve à beira da morte no Chile e até recebeu a extrema unção. Respondi com a sinceridade que escrevo agora:
– Nunca tive interesse de propagandear doença dos outros, que dirá doença minha. Não sou de fazer merchandising de desgraça. Fui curado por um médico do tipo sacerdote, Otto Baker, à base de medicação caseira e muito afeto.
Otto falou comigo por telefone a última vez há 25 anos, ele em Goiânia, sua terra. Choramos os dois. Salvou a minha vida.
Quando surgiram os sinais da radicalização política e da conspiração comandada pelo general Augusto Pinochet, ministro e então homem de confiança de Allende, a perseguição aos estrangeiros esquentou. Até comida negavam a gente. Quando queríamos comprar.
Papai então me mandou e a mamãe de volta a Natal. No Rio de Janeiro, fomos sequestrados por agentes da Ditadura brasileira. Queriam que ela delatasse a atuação do marido.
Papai conseguiu escapar pelo Uruguai clandestinamente. Ela negou, firme, comigo nos braços apertando a minha irmã confinada no seu ventre.
Disseram à minha mãe que ela seria presa, eu levado para a Febem e transformado em marginal perigoso. Mamãe ameaçou se jogar da sacada do Galeão.
Fomos salvos pelo ex-deputado federal potiguar Erivan França, que fora nos esperar e desconfiara por não ter nos visto.
Erivan França, cassado e trabalhando com o ex-governador Aluizio Alves numa editora, invadiu o covil onde os lacaios nos aterrorizavam e ameaçou denunciar tudo à liderança do MDB no Congresso Nacional. Erivan salvou nossas vidas. Meu segundo Otto Baker.
Erivan França, ex-marido de minha saudosa tia Marilda. Pai dos meus primos Cláudio(falecido), Cristina e João Café.
Erivan França que partiu para sempre em maio de 1988 e hoje me emociona de forma especial.
Os 40 anos da derrubada de Allende, da implantação da tirania de Pinochet, que matou centenas e centenas por fuzilamento no Estádio Nacional, torturou tanto ou mais que Médici no Brasil e Vidella na Argentina, Fidel Castro em Cuba, servem para aumentar meu nojo por ditaduras(sejam de Direita, Esquerda, de Diagonal, Transversal) e por quem as defende.
Quem apoia ditadura não passou pelo que nós passamos. Nem gostamos de recordar.
Mamãe certa vez respondeu de forma exemplar a uma pergunta se gostaria de voltar ao Chile:
– Fui bem criada pelos meus avós e pais que me ensinaram:
– Nunca volte a um lugar do qual você tenha sido expulsa.
Eu sigo a lição à risca.
Rubens Lemos Filho é jornalista