Por Gaudêncio Torquato
A campanha eleitoral deste ano será emblemática: mais curta, menos espetacularizada, mais objetiva e parca de recursos, e se desenvolverá sob o pano de fundo das crises econômica, política, moral e de gestão. Serão eleitos 5.568 prefeitos e cerca de 56 mil vereadores. Qual o perfil dos futuros comandantes dos Executivos municipais?
A princípio, saltam à vista algumas posições: ante a estreiteza de recursos, os candidatos de boas condições econômicas teriam vantagem, a partir da organização de estruturas mais fortes e consequente maior aparato midiático; perfis mais conhecidos, inclusive políticos tradicionais e celebridades, construiriam sinais mais fortes no sistema cognitivo do eleitor; o clima de insatisfação social, a partir dos milhões (entre quatro e cinco) de pessoas que desceram da classe C para as classes D e E, aponta para uma opção do eleitor por candidatos identificados como contraponto ao status quo.
A ocorrer esta tendência, a campanha municipal receberá forte influencia do que podemos chamar de Produto Nacional Bruto da Infelicidade, que agrega as demandas nas frentes sociais – principalmente nas áreas da saúde e educação -, e bolsos comprimidos pela perda de emprego, renda e inflação alta.
A carga de escândalos que corrói o tecido político, e que ganha ênfase nos eventos do mensalão e do petrolão, gera impactos sobre os atores políticos, mas o PT, que comanda o país há 10 anos, deverá receber a maior repulsa do eleitorado, podendo se prever diminuição de seus comandos nos municípios. Significa dizer que a rejeição à mandatária-mor, Dilma Rousseff, respingará nos espaços locais, ao contrário da tradição, quando a federalização das campanhas municipais só ocorria em grandes centros urbanos, puxada pela polarização entre PT e PSDB.
Sob essa moldura, veremos um desfile de tipos, com ênfase para o grupo que mais condiz com o espírito do tempo presente: os assépticos. É previsível a ascensão de perfis distanciados da velha política, aqueles que poderão desfraldar seu lema: passado limpo, vida decente. Para se respaldar nesse refrão, esses candidatos certamente têm pouco tempo de vida partidária e muitos até podem estar ingressando só agora na seara política. Serão os candidatos na faixa de 30 a 50 anos. Ganharão confiança e terão o voto para mudar o disco.
Face às demandas gritantes das comunidades, o discurso de compromisso com programas sociais continuará a ser aplaudido. Nessa trilha, entrarão os perfis identificados com os braços sociais da municipalidade. Alguns já exercem atividades de assistência nas localidades e, sob esse trunfo, terão grande oportunidade de êxito. Não se pode negar a força dos políticostradicionais, aqueles que dominam a política local, formando currais e exercendo o populismo.
Infelizmente, continuarão a ser eleitos, porque a mudança política não ocorre de maneira abrupta. Em função de circunstâncias e situações criadas pela erosão política, empresários (pequeno e médio porte) serão chamados pelas comunidades para ingressar na esfera executiva municipal. Muitos vêem seus negócios em queda e aproveitarão o momento do país para experimentar outros caminhos.
Teremos um bom núcleo de candidatos saídos das frentes da religião (igrejas, credos, evangelhos). Na crise, expande-se o impulso da fé. Os eventuais candidatos desse grupamento até podem não ganhar o apoio de toda a comunidade, mas fecharão densos núcleos em torno de seus nomes. Terão chance em campanhas com muitas candidaturas.
Profissionais liberais – médicos, engenheiros, arquitetos, advogados, professores-, compõem um grupo muito respeitado na comunidade. Por seus méritos, serão chamados a compor chapas. A batalha dos gêneros ganha evidência em função da crise que solapa a esfera da representação política. A mulher é vista como uma pessoa que cuida melhor da casa, da família, da educação dos filhos. Tal imagem se transfere à política, embora saibamos que a corrupção não seleciona gênero. Teremos uma grande leva de candidatas.
Como já está dito anteriormente, esportistas e celebridades – estrelas do Estado-Espetáculo -, pela ampla visibilidade alcançada nos campos, palcos e palanques formarão um contingente bastante competitivo. Terão muitos votos de bolsões das margens sociais. Haverá uma frente constituída por tipos com um discurso fortemente oposicionista contra os atuais governantes.
A linguagem oposicionista será muito ouvida e aplaudida em tempos de vacas magras. Ser contra é maneira de atrair os indignados.
Uma observação de pé de página. Por todas as regiões, ao lado dos eleitores Sem-Emprego, Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Escola, veremos também a categoria dos Sem-Discurso. Trata-se do contingente de competidores que apresentarão aos eleitores, em outubro, uma boca cheia de intenções, um bolso com dinheiro ralo e uma cabeça deserdada de ideias.
O país conta ainda com uma boa fornada de oportunistas Sem-Discurso, que se aproveitam da situação para subir na escada da vida.
Grande parcela dos 5.568 municípios deverá abrigar candidatos Sem-Discurso, até porque do tumulto das crises – política, econômica, moral e de gestão – emerge uma Torre de Babel que abre espaço para a banalização de escândalos e consequente nivelamento de perfis. Daí crescer a impressão de que todos são iguais. Ademais, nas últimas décadas, as doutrinas feneceram, as utopias faleceram, as tecnocracias se expandiram e as esperanças dão adeus.
A competição política é cada vez menos ancorada em ideologia. A administração das coisas substitui o governo dos homens. A matéria toma o lugar do espírito. No meio da lama moral, a sociedade clama por mais ação, mais verbas e menos verbos. Por falta de coisas concretas, substantivos e adjetivos tentam suprir o vácuo.
Os Sem-Discurso encherão o tempo dos eleitores com uma linguagem tatibitate. Vazia, sem propostas. A esperança é que o voto sai do coração para ocupar a cabeça. E assim será mais difícil comprar gato por lebre.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, além de consultor político e de marketing