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domingo - 31/03/2024 - 15:22h

Licença poética

Por Marcos Ferreira

Preciosa em registro do autor

Preciosa em registro do autor

Ontem, sábado (30) à noite, pelo WhatsApp, precisamente às dezenove horas e quarenta e cinco minutos, eu já havia entregado os pontos, jogado a toalha, e dito ao nosso amigo e cronista Odemirton Filho que ainda não escrevera nada para hoje. Ou seja, estaria de fora deste tatame do bom combate.

O plano era só ficar na moita, de olho nos oportunos e bem escritos resgates históricos do Bruno Ernesto; aguardar o Odemirton Filho, que sempre nos aparece com um assunto relevante, digno de reflexão; e me deliciar com os capítulos da saborosa novela/romance do François Silvestre, trama que venho acompanhando com crescente interesse a cada capítulo.

Ocorreu, porém, que uma determinada “leitora” não se deu por satisfeita e me exigiu participação, empenho para duelar com o relógio de ponto, arregaçar as mangas e dar o meu jeito para cumprir esta missão nem sempre tão fácil, todavia apaixonante. Assim, graças a citada “leitora” (que nunca ocupa o espaço reservado à opinião dos leitores) tomei gosto novamente por essa peleja com os meus neurônios e percebi que nem tudo estava perdido, que ainda me restara uma chance.

Parece até que ela percebe quando a locomotiva está fora dos trilhos, que existe algo tirando minha tranquilidade ou inspiração. Preciosa tem esse tipo de sensibilidade. É isso o que eu pressinto em relação a ela. Por exemplo, quando estanquei diante da página toda em branco, sem saber o que produzir, apresentar ao leitor de hoje, ela de novo preparou o salto, subiu na mesa e me ficou olhando fixamente, como dissesse com incomum brandura: “não desista; você vai conseguir”.

A gatinha é dessa forma, quer saber tudo que estou fazendo ou deixando de fazer. Compreende, atina para o meu estado de espírito. Não é de agora que a bichana me socorre nesses prolegômenos com que consigo desenvolver (às vezes mais, noutras vezes menos) um texto com até três páginas.

Penso, entretanto, que não será o caso de hoje. Eis, porém, a minha Preciosa com o seu olhar cheio de charme quanto intrigante. Então, como tutor coruja que eu sou, depressa agarrei o celular e fiz uma fotozinha para ilustrar está crônica que possivelmente há de vingar, salvar-se.

Hoje, portanto, ela pulou para dentro da minha rede (não durmo de cama) e me acordou às duas e quarenta da madrugada, espezinhando-me, puxando minha camisa, a fim de que eu fizesse minhas abluções, preparasse o café e me pusesse aqui, de modo a não faltar com esse compromisso com os leitores. É essa espécie de ideia que tento expor a esta hora. Não ofereço outra coisa. Após me tirar da rede, constatar que eu estava com o café pronto, os olhos bem abertos e iniciado a redação, ela abriu um bocejo e se recolheu.

Voltou para a cadeira em cima da qual gosta de dormir, à meia luz. E eu, para não a incomodar, liguei apenas a luminária da mesa.

Nos últimos dias Preciosa tem agido assim. Consegue roubar a cena; pula sobre meu colo, sobe nesta mesa de plástico bem pequena que mal cabe o notebook, uma luminária e a caneca de ágata com café. Volta e meia ela coloca uma patinha no teclado, ameaça desfazer o texto, como o julgasse inferior, sem a devida qualidade literária; puxa o fio do mouse, mordisca a tela, cobra um pouco de atenção. Não gosta (demonstra isso) quando fico quieto demais, silencioso, conversando com os meus botões, pensando no que o leitor aprovará ou não aprovará desta vez.

Só falta a Preciosa uma licença poética, tornar-se uma fábula e conversar comigo, bater um papo, dar algum palpite sobre este exercício solitário e nem sempre reconhecido que é o sacerdócio da escrita, cruz metafórica que abraçamos como devotos das letras.

Sim, existe uma psique bacana em Preciosa, como em todos os gatos e cães, um elo que as palavras se tornam insuficientes para explicar.

Vejo o reloginho no canto inferior direito do computador e constato que são seis horas e cinquenta e seis minutos. A passarada já fez a sua festa abandonando os dormitórios nas árvores das imediações. Imagino que não há mais o que dizer ou escrever. O café se acabou, o sono bateu e agora eu vou dormir.

Acho que cumpri com a minha missão.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Odemirton Filho diz:

    Mais uma vez o amigo cumpriu com maestria a sua missão, entregando-nos uma bela crônica. Valeu pela força, Preciosa.
    Abração, Marcos Ferreira.

  2. Bernadete Lino diz:

    Acho lindo pessoas que convivem com animais, sejam eles, cães ou gatos. Quanto criança lembro de um cágado, um frango que foi adotado ainda pintinho e um pombo. Nada mais. Quando minhas filhas nasceram, lembro da dificuldade pra cuidar delas, trabalhando fora, no mínimo oito horas por dia. Se não tinha tempo de cuidar pessoalmente das filhas, animais, nem pensar. Sei que são seres especiais, com uma sensibilidade paranormal. Um cão sente a frequência do seu dono; o gato também! Não sei se um dia mudarei minha forma de pensar e adote um bichinho. Por enquanto, fico só admirando quem o faz. Preciosa faz jus ao nome. Ela supre a sua necessidade de solidão para criar. É o seu jeito! Respeito! Aproveito para desejar-lhes uma Feliz Páscoa! Não é só Preciosa que necessita dos seus textos para ter um domingo feliz! Eu também preciso!

  3. VANDA MARIA JACINTO diz:

    Olá, Marcos!

    Boa noite!

    A preciosa, realmente faz jus ao nome. Que belezinha! Ter um animal para dividir nossos espaços, é algo especial… Sorte a tua.
    Abraços

  4. Amorim diz:

    Grande Marcos Ferreira, sempre um prazer ler seus artigos. Mas hoje com retrato da Preciosa desculpe; ela tomou a cena.
    Um abraçaço

  5. Cristiane dos Reis Braga diz:

    Preciosa há de te conectar com o sagrado, proteger-te dos teus próprios leões. Boa noite.

  6. Francisco Nolasco diz:

    Boa noite, poeta! Só agora li sua crônica dominical. Estive fora do ar com afazeres domésticos e tinha esquecido o celular….
    Muito interessante essa coisa dos felinos, a gente aqui tem Zaya uma persa loira que vez por outra nos traz alguma demostração de carinho e também alegrias…

  7. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Perfeita parceria literária, os animais sempre conversam com a gente, pena não ouvirmos. Obrigado por compartilhar tanta sabedoria sobre a diversidade e multiplicidade deste nosso mundo que não é apenas humano.
    Abraços, parabéns.
    Dhema

  8. Airton Cilon diz:

    Os gatos são místicos e tem uma sensibilida apurada e percebem nossos sentimentos. Quando se tem um gato em casa, nunca estamos sós. Abraços e até a próxima!

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