domingo - 12/01/2025 - 10:50h

A boina vermelha

Por Bruno Ernesto

Foto do autor

Foto do autor

Não é novidade que o avançar dos anos pode ser um terror para a maioria das pessoas. O maior pesadelo, diria.

Certa vez, enquanto aguardava o início de um evento cultural numa prestigiosa instituição cultural, numa antessala – quase como uma coxia -, conversava com alguns colegas e pessoas do mais alto gabarito – como dizem – , quando um de seus membros, já beirando a casa dos oitenta anos, adentrou e, logo após se acomodar, foi logo fustigado por outro de aparente idade:

– Chegou o homem que, mais que qualquer outro, faz parte das maiores instituições sociais, culturais, científicas, religiosas, filosóficas e esotéricas que se possa imaginar, e que, agora, dizem que é imortal.

De pronto, ergueu a voz, e com um olhar fulminante, disparou:

– Você está praguejando contra mim! Não morrerei tão cedo!

Daí pra frente, o ar que há pouco era de total descontração e camaradagem na coxia, num estalar de dedos, fechou-se, ficando esse pobre homem ensimesmado.

Todos se entreolharam e compreenderam que, apesar de tão letrado, instruído, de voz firme e autoritária, ao pobre homem faltava coragem e serenidade para enfrentar ocaso.

Decerto, depois de perder as estribeiras, deve ter se arrependido profundamente de, num descuido, ter demonstrado a sua real fraqueza.

Não o julgo. Cada um reage à sua maneira.

Certa vez presenciei um diálogo do meu pai com um primo dele – ambos já beirando os oitenta anos na época – e, lá pelas tantas, escutei o primo dele pontuar:

– Bem, Ernesto. No dia em que eu não servir para mais nada, pelo menos servirei para fazer sabão.

Não é incomum escutarmos, ou nós mesmos bradarmos aos quatro ventos, que não vemos a hora da aposentadoria; de chegar o dia de não se fazer nada. Ter o descanso merecido.

Num primeiro momento, deve ser fantástico acordar na hora que bem entender, andar sem destino, passar horas e horas lendo, assistindo televisão, cuidando de afazeres domésticos antes deixados de lado; talvez viajar, usufruindo o tempo de sobra que disporemos ou, simplesmente, curtindo o ócio. Claro, se o dinheiro der e a saúde permitir.

Se você fizer uma breve busca sobre os desafios enfrentados pelos idosos após a aposentadoria, verá que, paradoxalmente, muito passam a enfrentar sérios problemas psicológicos, pelo simples fato de que não compreendem que nessa nova realidade é extremamente necessário ocupar-se para que o ócio, ao invés de ser algo prazeroso, não se transforme em um terrível ocaso.

Não se engane, caro leitor. Embora possamos ter a percepção de que nos países desenvolvidos, onde o nível econômico aparentemente pode permitir uma velhice mais estável – pelo menos do ponto de vista financeiro – essa realidade é comum no mundo inteiro. Uns mais, outros menos.

Se você gostar de visitar lugares históricos e museus e tiver a oportunidade visitá-los no exterior, verá que há guias que são altamente requisitados para lhe contar a história local, além de que há guias específicos para lhe acompanhar nas visitas aos museus e que são profundos conhecedores das obras de artes, especialmente pinturas dos grandes artistas.

A despeito disso, recentemente, ao visitar o Rijksmuseum, que é o museu nacional em Amsterdã, pude ver a famosa tela A Ronda Noturna (De Nachtwacht), que é uma gigantesca pintura a óleo sobre tela do pintor holandês Rembrandt, e que foi pintada na era de ouro neerlandesa, entre os anos de 1639 e 1642, e retrata a Guarda Cívica de Amsterdã sob comando do capitão Frans Banning Cocqem.

Embora esteja passando por uma importante restauração, é impressionante e desperta o interesse e curiosidade de muitos dos visitantes. Não há quem não se impressione.

Entretanto, o que me chamou a atenção foi que, quando fui ver os quadros de Johannes Vermeer, outro pintor holandês e igualmente famoso, logo ao lado da A Ronda Noturna, avistei um pequeno grupo ao redor de uma boina vermelha em frente à igualmente famosa tela A Leiteira.

Aproximei-me e pude constatar que debaixo daquela boina vermelha estava um senhor de fala bem suave e que trabalhava como guia daquele pequeno grupo.

Embora já tivesse visto esses guias altamente qualificados em outros museus, esse senhor era bem diferente deles.

Muito bem postado, munido de um microfone sem fio, voz suave e visivelmente conhecedor das obras do museu, pude perceber que, pelo menos no mundo das artes e da cultura, há oportunidade para todas as idades, e que os de idade avançada, neste caso, têm uma vantagem em relação aos demais, pois a experiência e o conhecimento acumulado ao longo dos anos são revertidos em conhecimento. Não que os mais jovens também não o possam ser, iguais ou até mais; entretanto, a lógica seria essa.

Talvez, aquele senhor, necessariamente, não sobreviva exclusivamente da renda dessa atividade. Não sei.

Quem sabe seja uma forma de manter-se ativo e tenha escolhido unir o útil ao agradável. É possível.

Decerto que no Brasil, para a esmagadora maioria das pessoas, a aposentadoria, quando não intangível, não significa nada mais além de que está avançando na idade, e constata-se que a vida simplesmente escorre por entre os dedos, sem muito poder acrescentar. Infelizmente é a nossa realidade.

Não por onde, a despeito do temor daquele senhor a que me referi no início deste texto, penso que o escritor Lima Barreto estava certo ao dizer que não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.

Como diz o nosso editor, Carlos Santos: Ô luta medonha!

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2025. Todos os Direitos Reservados.