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domingo - 29/05/2022 - 08:10h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 2

MALDITA TRINDADE

Por Marcos Ferreira

Um ano e oito meses antes, naquela manhã que tinha tudo para ser mais uma como outra qualquer, entre o barulho de algumas máquinas de datilografar e a fumaça de cigarros, Jaime Peçanha se encontrava na redação da Tribuna Mondronguense, onde já trabalhava há três anos. De repente, o choque medonho.demissao-justa-causa

Era o ano de 2001, precisamente uma terça-feira, cerca de nove horas e treze minutos do dia 11 de setembro. Jaime e outros colegas de redação assistiam, pela tevê da sala, à colisão dos dois aviões contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, na ilha de Manhattan, em Nova York. Um terceiro aparelho atingiu o Pentágono (sede do Departamento de Defesa dos EUA, em Washington D.C.), enquanto outro caiu em uma área deserta no estado da Pensilvânia. “Meu Deus do Céu!”, monologaram alguns amigos de Jaime, estarrecidos. Jaime, todavia, não disse palavra, abismado. Daí a pouco Margareth, a funcionária da recepção, tocou no ombro de Jaime:

— Alberto, o diretor, está chamando você.

— Obrigado. Já estou indo — respondeu.

Ao longo daqueles três anos em que atuava na Tribuna Mondronguense como repórter e editor de cultura, Jaime nunca se dera bem com o diretor administrativo Alberto Cardoso. Sem motivo aparente, Alberto desenvolvera e nutria contra Jaime uma animosidade e antipatia que o repórter não fazia ideia do porquê ou origem. Jaime iniciara sua trajetória na Tribuna como revisor e copidesque, função esta que, posteriormente, o habilitou a também escrever matérias culturais para o Mondronguense. Devido a essa antipatia gratuita do senhor diretor administrativo, no fim das contas Jaime trabalhou durante cerca de um ano e meio como repórter, porém com a carteira ainda assinada apenas como revisor de textos, atualização postergada por Alberto.

Essas e outras fizeram com que o clima entre o editor de cultura e o diretor financeiro só piorasse com o passar do tempo. Uma rixa tácita e nem sempre velada se estabeleceu entre os dois. Até que naquela manhã de 11 de setembro de 2001, logo após o atentado terrorista contra os Estados Unidos, Jaime Peçanha foi chamado ao gabinete de Alberto Cardoso. Com indisfarçável regozijo, Alberto demitiu Jaime categoricamente, sem justa causa. O diretor financeiro apenas alegou que a empresa estava em apuros e que, dali em diante, iniciaria uma redução de pessoal.

Tipo vermelho e jovem, menos de quarenta anos de idade, contudo com os cabelos quase totalmente grisalhos, Alberto Cardoso era um homem de temperamento comedido, quiçá frio, e não menos educado. Apesar daquela má vontade em relação a Jaime, que parecia algo até patológico, era respeitoso com ele.

— Sente-se aí, Jaime. O que tenho para lhe dizer é um pouco chato e naturalmente terei que lhe apresentar algumas justificativas. Pois você, a exemplo de outros desta empresa de notícias, desempenha suas funções com responsabilidade e competência. O que lhe direi agora também terei que expor a mais algumas pessoas. Portanto, se não se importar, eu gostaria que você sentasse para me ouvir.

— Resuma. Ouvirei mesmo em pé — disse.

— Se prefere assim… Você está demitido!

— Tudo bem. Acho até que demorou muito.

— Fique sabendo que isso não é nada pessoal.

— Ah, claro que não! É porque eu mereço.

— A empresa precisa fazer alguns cortes.

— Ok. Onde assino? Essa conversa é inútil.

Jaime Peçanha assinou a demissão em três vias e deixou a sala sem apertar a mão do diretor Alberto Cardoso, que ficou com o braço estendido por alguns segundos e, de rosto um tanto mais vermelho pelo constrangimento, recolheu a mão e baixou a cabeça. Ao fim e ao cabo, entretanto, como era da vontade dele há um bom tempo, Alberto conseguira ver o enfezado Jaime Peçanha pelas costas.

— Por favor, peça ao Reginaldo que entre.

— Não o vi por aqui — respondeu Jaime.

No jornal e no mundo todo não se falava noutra coisa, exceto o atentado terrorista contra os Estados Unidos. Na cabeça de Jaime, porém, isso não se fixava. O que lhe martelava no juízo era chegar em casa naquela manhã e comunicar a Laura, sua esposa, que fora demitido do Mondronguense “por insubordinação mental”, feito ele vez por outra costumava vaticinar como razão de sua previsível dispensa. Então, com a cabeça quente, cheia de aborrecimentos e apreensões, rumou para sua residência no grande Alto de São Manoel, mais precisamente no Conjunto Walfredo Gurgel, à Rua Padre Mota, número 3521. Ali ele teria outra surpresa desagradável.

Ele não tinha o hábito de chegar naquele horário, antes das onze horas. No mais das vezes só aparecia para o almoço (e nem sempre) após o meio-dia. Jaime tirou o pequeno molho de chaves do bolso da calça e abriu o portão. A porta da frente estava aberta. Silencioso, entrou à procura da esposa. Encontrou-a no quarto, sobre a cama, toda nua, com o Reginaldo Marinho, repórter de política da Tribuna, também por inteiro despido em cima dela, ambos se comendo danadamente.

Antes de ser visto, Jaime deu meia-volta.

Marcos Ferreira é escritor

Leia também: A cidade que nunca leu um livro – (Capítulo 1 – Prólogo).

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Fabiano diz:

    Qualquer semelhança com o ambiente e personagens que conhecemos profundamente, não é mera coincidência. Magnifico, meu caro!

  2. Airton Cilon diz:

    Nesse ínterim de tragédias, Jaime vive seu inferno social. Cenas dos próximos capitulos… Abraços Marcos Ferrreira.

  3. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Nossa!!! Surpreendente (literalmente) e impactante! O que só aguça o meu interesse pelos próximos capítulos!!! Estou gostando muito; tentei ser empática com o Jaime: embora evite usar o termo… é muito azar pra um dia só! Como diria o meu falecido pai: em cima de queda, coice!!!😢

  4. Aluísio Barros de Oliveira diz:

    Boa tarde, MF. Segue a saga de Jaime… Torres humanas são atacadas todos os dias. Vêzes, imagino q alguém mira bem no centro das minhas costas, enquanto caminho pelas sendas do Parque Municipal. Bacurau. Temp 2, Ep.5.
    Tanta morte matada na urbe amada, né MF? Que paiseco. Dizem q aqui se tornou o paraíso para as milicias do país vizinho [Sim, o Ceará parece um país próspero, com sua estrada litorânea capaz de nos matar de inveja. Não mostra o inferno q o cearense enfrenta, quando carece de adentrar e caminhar fora dos olhos q agrada o turista: um horror!].
    Uma pessoa que dá meia volta quando pega a esposa em função com outro não pode ser dita insubordinada mentalmente. Jaime tem tutano para prosseguir. Aguardemos q planos desenvolverá em pleno estado de sofrência. Aquele Alberto Cardoso é merda igual a tantos. Deve ter um JOM só pra ele agora.
    – Garçom, por favor. Oh, Laura!
    E segue, né.
    Vamos torcer pelo 3.8 de Jaime. Ah, sim.
    Bom domingo, MF. Hoje chove mais q é para a névoa merecer selfies.

  5. Evandro Agnoletto diz:

    Sobre o segundo capítulo do livro A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO, do escritor mossoroense Marcos Ferreira, vejo que Jaime foi colocado em segundo plano em duas instâncias humanas fundamentais: no labor, no trabalho, exercia uma função específica, e sua carteira registrava uma inferior; e em sua relação conjugal, afetiva, com o adultério da esposa e, registre-se, com um repórter. Parece que tanto o diretor administrativo-financeiro quanto Laura privilegiam Reginaldo Marinho. Sobrenome que instiga a imaginação, dado o ato de Reginaldo. Resta ver qual a dimensão do infortúnio de Jaime no desenrolar da trama, e de que natureza os dissabores são de responsabilidade direta de Jaime, como, por exemplo, não adaptação aos valores hoje preconizados de que a ambição é o móbile primeiro de toda e qualquer existência, e a ausência dela o desconecta e o desloca da “nobre, evoluída, culta e casta” sociedade mondronguense, ou Jaime trata-se mesmo de um recalcitrante emperdenido e atávico, que ainda crê que pensar e realizar juízos de valores fundamentados, lógicos, justos e honestos são princípios que devam ser preservados. Se Jaime for esse ser medievo e ultrapassado, jamais será aceito nesta “polis de gênios” da raça humana, em cujo pórtico está inscrito : Bem-vindo à cidade de Mondrongo. Deixais todas as ideias, imaginação e criatividade ao ultrapassar este pórtico, conforme Lei Municipal número 9 , de 10/11/2012. (9,10,11 e 12 são os números do burro no jogo do bicho)🤷. O pórtico de Mondrongo superou Dante.
    Até o próximo capítulo!
    Evandro Agnoletto
    Porto Alegre-RS
    e-mail: evandro.agnoletto@gmail.com

  6. Amorim diz:

    Efeito espelho do diretor, ele via no Jaime aquele que não podia ser.
    Final mais trágico não podia ser, naquele dia, mas o Jaime agiu com sabedoria, embora tenha pago um alto preço; afirmo: valeu.
    Um abraçaço caro amigo cibernético!

  7. Raimundo Gilmar da Silva Ferreira (Gilmar) diz:

    Esse conto lembrou uma cidade do interior do Amazonas. Ventilaram nos ouvidos de um médico que deixasse rapidamente o plantão porque a sua casa estava pegando fogo. Correu para lá, mas não viu fumaça. Entrou na casa e encontrou a bela esposa fogosamente copulando com o gerente do banco na cama do casal.

  8. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Dizem que a desgraça nunca anda ou chega sozinha. O cabra leva duas bordoadas, uma na carteira, outra na cabeça. Gostando de ler esse romance…

  9. Marcos Antonio Campos diz:

    Muito bom, amigo! A vida como ela é. O melhor e o pior em Mondrongo. Atrás da tempestade sempre vem a ambulância. Nelson Rodrigues deve estar sorrindo. Parabéns! Vou esperar o próximo domingo para me deliciar com seu folhetim.

  10. Simone Martins de Souza Quinane diz:

    Boa Noite, caro escritor!
    A vida, às vezes, nos prega peças e nos coloca no meio de um redemoinho! Jaime soube reagir e esquivou-se do embate frente a frente que não resolveria os seus problemas.
    Cenas corriqueiras que mostram a vida nua e crua!
    Aguardemos o capítulo 3.
    Beijão 😘😘

  11. Rizeuda da silva diz:

    Boa noite, Marcos!

    Sensacional! Amando cada capítulo e avexada para que chegue logo o domingo. Abraços, Poeta!

  12. Marcos Ferreira de Sousa diz:

    Prezados e queridos amigos leitores,
    Bom dia.
    Tive uma semana um tanto apertada e com atividades que me impossibilitaram de vir aqui expressar minha gratidão a vocês por seus depoimentos tão motivadores. Peço desculpas, portanto, por não ter respondido a cada um de vocês, como é hábito meu fazer, neste espaço dedicado à opinião do leitor. De maneira coletiva, então, agraço a todos que tiraram um tempinho de suas ocupações e programações e aqui deixaram um comentário instigante e gratificante sobre este romance folhetim “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”. Amanhã o Capítulo 3 estará disponível. Espero que gostem e continuem acompanhando a narrativa.
    Cordialmente,
    Marcos Ferreira.

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