Por Marcos Ferreira
Algumas pessoas são frias como o próprio gelo. Ou, como também se costuma dizer, têm sangue de barata. Ou sangue nenhum.
Após cerca de quinze minutos, quando Laura e Reginaldo Marinho deixaram o quarto e foram à sala, depararam com Jaime numa cadeira da área frontal, de perna cruzada, semblante imperturbável e fumando. Os amantes, sem demonstrar o menor embaraço, somente se entreolharam e ocuparam outras cadeiras da área.
Reginaldo, que é primo legítimo de Laura, também acendeu um cigarro, comentou qualquer coisa acerca do tempo chuvoso, e Laura foi quem indagou ao marido há quanto tempo ele havia chegado. Porque estivesse fatigado, Jaime descruzou a perna e cruzou a outra, lançou a nuvem de fumo para cima e respondeu calmamente:
— O bastante para ver vocês na minha cama.
— Que história é essa de minha cama?! — reagiu a mulher num tom menos amistoso, como se houvesse recebido um insulto. — Você não tem nada aqui, Jaime, exceto aquele notebook caduco e uma estante de livros velhos que só servem para juntar poeira, pois você nunca limpa nenhum. Estão aí de enfeite, ocupando espaço. Acho que você fica esperando que eu cuide daquela tralha, mas não faço. E tem mais: quando você me conheceu, já sabia da minha relação com o Reginaldo.
— Sim, eu sabia. Porém me casei com você.
— Casou coisa nenhuma! Apenas botar uma aliança no meu dedo não configura um matrimônio. Você me conheceu viúva, sem filhos, independente, dona do meu próprio nariz e desta casa. Apenas trouxe as suas roupas amarfanhadas para cá e mais alguns objetos. E deixamos bem claro, quando você falou em casamento, que eu e Reginaldo continuaríamos com nossa relação, com ou sem você.
— Foi isso aí, Jaime, você concordou com o nosso triângulo amoroso. Perdoem se a piada é ruim — interveio Reginaldo lançando a fumacinha pelo nariz e pela boca, atingindo o pequeno bigode ruivo, um tanto amarelecido pela ação prolongada da nicotina. — Até fizemos um ménage à trois algumas vezes, e você não reclamou de nada. Lembra? Naqueles começos, pelo contrário, mostrou-se bem à vontade.
Depois gamou na minha prima e inventou essa história de casamento. Deveríamos ter ficado como estávamos, sem compromisso, sem esse formalismo de marido e mulher. Bom, não discutam isso agora, na minha presença. Estou de saída. Preciso ir ao jornal, pois tenho um bocado de trabalho em atraso e o editor está no meu pé.
Jaime se curvou para a frente, bateu a cinza do cigarro no pequeno cinzeiro sobre a mesa de centro, e exibiu a sombra de um sorriso:
— Não sei se você ainda tem emprego na Tribuna — falou com a mesma serenidade com que avistou a esposa com o primo dela na cama. — Fui demitido esta manhã por Alberto Cardoso. Alegou que a empresa está no vermelho e que terá que realizar alguns cortes, reduzir pessoal em todos os setores. Claro que a redação entra na valsa. Quando eu estava saindo, portanto, ele me pediu que mandasse você entrar. Das duas, uma: ou vai lhe botar no olho da rua ou pretende lhe encarregar de fazer o meu trabalho. Seja por troca de editoria ou por acúmulo de função.
O outro deu um pinote, cofiando o bigodinho:
— Troca de editoria, Jaime?! Duvido muito! Você, assim como ele, sabe que eu não entendo bulhufas a respeito desse seu mundinho vaidoso da cultura. Se for isso, meu chapa, estou ferrado. Meu negócio é falar dos políticos, contra ou a favor, conforme me ordenam fazer. Especialmente contra. Se é para desancar o presidente da Câmara, então eu baixo o cacete no infeliz, faço a caveira do bacana sem dó nem piedade.
Por outro lado, se me mandam elogiar certo deputado situacionista, aí eu babo os ovos do cara. Modéstia à parte, sou bom nesse métier. Estou há quase dez anos ininterruptos no campo minado da política e não me sinto apto para outra atividade. O mais provável, portanto, é que Alberto Cardoso também queira me demitir.
— Não sofra por antecipação, Reginaldo — falou Laura. — Você é casado com a irmã dele e tem duas crianças pequenas com ela. Além disso, é um dos funcionários mais antigos do jornal, embora seu salário não seja tão compatível. Você tinha menos de vinte anos quando começou a trabalhar na Tribuna.
Foi por essa época que nós começamos a transar. Pouco depois me casei com o falecido Evandro Guimarães, rapaz bom, motorista de carreta. Ele só tinha vinte e nove anos quando bateu noutro caminhão em uma estrada do Pernambuco. Pelo menos me deixou esta casa.
Após dois pigarros, Jaime se manifestou:
— Quanto a mim, porém, está sem jeito. Já assinei os papéis e agora espero receber os meus direitos rescisórios. É isto. Não sou cunhado do mandachuva, não procriei com nenhuma irmã dele. É possível, Reginaldo, que a sua cabeça não role. Já eu tenho que me virar, arrumar outra coisa para fazer ou outro jornal. Posso tentar uma vaga de revisor no Diário do Oeste. Ouvi dizer que o velho Fernando Nonato está prestes a se aposentar.
Além disso, enquanto não consigo assinatura na carteira, restam os livros dos autores locais. O que não falta neste município de Mondrongo, como costumo dizer, é gente querendo se tornar escritor. Até a promoter Lourdes Ramos, nova imortal da Academia Mondronguense de Letras, lançou uma biografia criminosa acerca da vida sacerdotal e política do bispo Dom Adriano Santana.
Reginaldo Marinho se levantou de repente, tirou o telefone do bolso e consultou as horas. Em seguida atochou o restinho da guimba no cinzeiro e avisou aos demais que estava indo embora para enfrentar Alberto Cardoso na Tribuna Mondronguense. Faltava uma meia hora para as onze. Ele teria tempo suficiente de se encontrar com o diretor administrativo e saber quais eram as suas intenções.
De calça jeans e tênis, abotoou mais dois botões da camisa azul-claro de mangas longas. Tais mangas estavam dobradas na metade dos antebraços. Realinhou também o colarinho e penteou o liso e farto cabelo com as pontas dos dedos. Estava ali um sujeito caucasiano, bem-apessoado, cerca de um metro e setenta, orçando pelos trinta anos, idade próxima à de Jaime, que está com trinta e dois.
Reginaldo deu um leve beijinho no rosto de Laura. Antes de realmente sair, por enxergar no Peçanha não meramente um colega de redação, mas também um amigo e integrante do tal “triângulo amoroso”, estirou o braço para Jaime e trocaram um aperto de mão. Mão esta, ressalte-se, vinda direto de mais um coito com a esposa terceirizada de Jaime. Este, por ter sido Reginaldo quem lhe apresentara Laura e contribuíra para que ela e Jaime ficassem juntos, não nutria raiva alguma contra o primo incestuoso da mulher. Não conseguia sentir nem mesmo ciúmes do homem que fornicava com aquela a quem ele, apesar da relação promíscua, tinha por esposa.
— Boa sorte com o Alberto — falou Jaime.
— Obrigado, meu caro. Vou lá enfrentar a fera.
Jaime acrescentou com o vestígio de sorriso:
— Acho realmente que ele vai livrar o seu pescoço.
Reginaldo respondeu com uma pitada de ironia:
— Afinal de contas durmo com a irmã caçula dele.
— Dê notícias — disse Laura, de braços cruzados.
— Claro! Assim que eu puder — prometeu.
Quando Reginaldo saiu, Laura avisou a Jaime:
— Agora eu vou tomar um banho. Depois, tim-tim por tim-tim, me explique essa história da sua demissão e o que espera conseguir daqui por diante. Mas a conversa vai ser no quarto, na cama. Quero você daquele jeitinho.
Decorrido algum tempo Laura e Jaime pegavam fogo sobre os lençóis limpos que ela substituíra. Ele, ao contrário de Reginaldo, custava a atingir o clímax. Enquanto isso, em meio a gemidos e contorcionismos, ela extravasava, dizia expressões chulas e tinha múltiplos orgasmos. Algo que não conseguia com o primo.
Entre quatro paredes, então, eles se entendiam.
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Prólogo;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Capítulo 2.
Marcos Ferreira é escritor
O escritor Marcos Ferreira aborda neste seu romance um tema que é considerado um tabu pela sociedade e que é negado até pelos praticantes desta modalidade de relacionamento.
Falar de trisal para quem pratica este tipo de sexo gera reações diversas nos envolvidos no trisal, podendo ir de um sorriso malicioso a uma reação violenta capaz de resultar em processo por busca de reparação moral.
Daí eu entender esta abordagem requerer muita coragem de quem levanta um tipo de comportamento que a sociedade condena, mas comum está se tornando até mesmo em cidades do interior, onde os preconceitos são mais fortes.
E preciso entender que trisal é todo e qualquer relacionamento amoroso entre três pessoas, podendo ser dois homens e uma mulher, caso dos personagens do romance, ou duas mulheres e um homem. Sexo entre três pessoas do mesmo sexo configura um trisal. Normalmente os que são praticantes deste tipo de sexo, conforme literatura e filmes, costumam usar peças eróticas e até mesmo aditivarem a relação com uso de mel de abelha ou leite condensado. Entendem agora a música adocica?
Que venham os próximos capítulos deste romance que já nas primeiras páginas nos leva a reflexões sobre o comportamento de uma sociedade decadente que busca preencher o vazio existencial com a busca desenfreada do prazer, pouco se importando com os valores morais.
Parabéns ao Marcos Ferreira por nos brindar com texto brilhante.
Isso já acontece a muito tempo, inclusive há boatos de que em um condomínio luxuoso de Mossoró estão ocorrendo coisas que deixam Sodoma, Gomorra e a Ilha de Lesbos à anos luz de inovações íntimas.
Caro Inácio Augusto de Almeida,
Para a minha surpresa, você deu uma aula (em síntese) sobre esse tipo de relacionamento que eu chamei (de maneira um tanto fora de moda) de triângulo amoroso. Você apontou até um termo específico, apropriado, que me escapou da memória e que não é admitido pelos dicionários oficiais. Claro que a trama tem a pretensão de ir além desse fenômeno amoroso, contudo, pelo modo como as coisas começaram e se estabeleceram, agora está difícil não prestar atenção nesse trisal. Tornou-se quase uma personagem. O Capítulo 4 já está prontinho.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
A cada capítulo o livro fica melhor. Que venha o próximo.
Parabéns, meu amigo.
Show!
Querido Odemirton Filho,
Você, a exemplo de outros neste espaço, é uma grande inspiração.
Muito obrigado pela leitura e carinho de sempre.
Forte abraço,
Marcos Ferreira.
Bom dia Cibernético Amigo!
Um abraçaço!
Caro Amorim,
Estou lhe esperando para aquele nosso café.
Você é um permanente convidado.
Grande abraço,
Marcos Ferreira.
Trama sensacional, terceiro capítulo do Marcos.
“Entre quatro paredes”.
Como diria o notável, Bartô Galeno”: A gente briga mas depois se entende, é sempre assim, amor tão vagabundo”.
Poeta Francisco Nolasco,
Achei ótimo você ter recordado o Bartô Galeno. Esses últimos eventos têm muito a ver com a letra da música.
Domingo tem mais aqui no Blog Carlos Santos. O Capítulo 4 já está na agulha.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Bom dia, meu caro amigo!
Boa leitura, cenas corriqueiras com uma pitada erótica, triângulo amoroso!
Você se sai bem em todas as vertentes!
Parabéns!
Querida Simone Martins,
Que bom que você vem acompanhado meu romance folhetim aqui no Blog Carlos Santos. Este “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”, pode esperar, é uma caixinha de surpresas, e safadezas. O Capítulo 4 está pronto e apimentado. Nada, entretanto, que a impoluta sociedade mossoroense não suporte. Mondrongo e Mossoró têm muito em comum.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Isso já acontece a muito tempo, inclusive há boatos de que em um condomínio luxuoso de Mossoró estão ocorrendo coisas que deixam Sodoma, Gomorra e a Ilha de Lesbos à anos luz de inovações íntimas.
Prezado Wendell Stewart da Costa Silva,
Você está certíssimo ao dizer que isso, o trisal nominado por Inácio Augusto de Almeida, presente em meu romance folhetim “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”, não é nenhuma novidade em Mossoró. Há muito tempo, portanto, ouço falar nessas histórias “cabeludas”. E, como eu já disse, Mondrongo e Mossoró têm muito em comum.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Achei interessantíssimo o viés tomado com relação ao flagra dado pelo personagem Jaime. Creio, pegou todo mundo de calça de curta, pois a sacada, para sair do imbróglio, foi sensacional. De quebra, um assunto-tabu. Ótimo. Parabéns!
Prezado escritor Raimundo Antonio,
Você é certeiro nas suas breves e valiosas palavras. Disse, com tão pouco, tudo que eu realmente tentei realizar no capítulo em questão. Como já falei aqui nos comentários, o Capítulo 4 está prontinho e espero contar, mais uma vez, com a sua leitura. Torço que os puritanos de Mossoró e de Mondrongo não tentem interditar o Blog Carlos Santos por causa deste “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”. Estamos só nos aquecimentos.
Forte abraço,
Marcos Ferreira.
Surpreendida, novamente! Quando pensei que ia rolar tiro ou facada, a história era bem outra. Instigante o texto! A curiosidade só aumenta! Parabéns por fugir do lugar comum e apresentar um texto inesperado, Marcos Ferreira!
Prezada Bernadete Lino,
Eu me sinto honrado e gratificado com o seu comentário. Sobretudo por sua capacidade em atentar para detalhes como estes que você citou tão oportunamente. São leitoras e leitores como você, portanto, que fazem este exercício da palavra escrita valer a pena. Como anunciei neste espaço do leitor, o Capítulo 4 já está pronto e monstra mais um pouco da fictícia cidade de Mondrongo (bastante parecida com Mossoró em certos aspectos) e das poucas personagens que expus até o momento. Espero, portanto, que você continue acompanhando este romance folhetim “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”. Ainda há muita água para rolar debaixo desta ponte.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.