domingo - 26/07/2020 - 06:54h

A ciência absoluta

Por Roncalli Guimarães

No final do Século XIX, mais precisamente em 1891, um corante chamado  azul de metileno começou a ser usado como um antimalárico. O que ninguém esperava era que décadas depois, mais  precisamente em 1952, um derivado desse Fenotiazídico iria transformar a psiquiatria.

Nessa época, a Fenotiazina já era utilizada como anti-histamínico e por pura casuística um anestesista francês percebeu sua capacidade em acalmar pacientes psicóticos. Daí em diante, a clorpromazina ou o amplictil, como é mais conhecido, transformou a psiquiatria em ciência como a conhecemos.  Evidência e empirismo também fazem parte da medicina.Vivemos hoje momentos de contradição e dúvidas da ética científica no meio de uma pandemia de proporções graves. Sabemos que a ciência tem como princípio basilar repetir e comprovar resultados, porém não há como desprezar as evidências médicas, até porque muitas  descobertas científicas vieram de observações casuísticas.

Alguém poderia descordar com argumentos que nosso momento atual se trata de doença contagiosa, infecciosa, uma síndrome respiratória que não tem relação com doença mental, mas a proposta do texto é outra, é mostrar interesses biopolíticos, manipulações de informações científicas à conveniência de interesses que passam longe da medicina.

Voltando à história da psiquiatria, o amplictil foi comparado à descoberta da penicilina. Doentes mentais eram isolados e confinados em grandes manicômios com camas de ferro soldadas ao piso, incontroláveis situações de higiene e intensa agressividade. Esse era o retrato antes da descoberta da clorpromazina.

Após seu uso, a psiquiatria pôde avançar como ciência facilitando ainda a interdisciplinaridade com outras ciências como a psicologia, terapia ocupacional e serviço social. Mas essa história não teve percurso tão romântico.

Os Estados Unidos não aceitaram tão fácil essa nova descoberta, por questões políticas, por ter sido descoberta na França e também por ideias psicanalíticas já que na época existia forte divisão e ideologização entre a psiquiatria e a psicanálise. Nesse ponto chegamos à semelhança entre um tratamento de doença mental no passado e uma pandemia no século XXI.

Hoje, chefes de estado entram em conflito devido ao uso ou não de medidas protetivas radicais como o isolamento social; evidências científicas são repensadas para poder acomodar saúde pública e saúde econômica. Medicação como a ivermectina, que é um antiparasitário, foi testada in vitro e mostrou eficácia mas não foi testada em humanos, mas isso não dá o direito de ser refutada pelas academias. A ciência trabalha com resultados e protocolos, mas a prática clínica não pode ser desconsiderada. Às vezes, correntes científicas contaminadas por interesses e ideias confundem, desinformam e expõem a sociedade ao risco.

Em 1952, a comunidade médica americana e a sociedade resistiram a forças contrárias e argumentos falsos e dois anos depois o uso de antipsicóticos se disseminou e revolucionou a prática da clínica psiquiátrica. Acredito, que a estática social ou inércia explica essa aceitação de modelos de pensamento tão imobilizadores nos tempos atuais. Talvez isso tenha surgido a partir da fragmentação da sociedade, da “pasteurização” no sentido de que ideias e pensamentos são fabricados, chegando até nós prontos para o consumo.

Fomos perdendo a capacidade crítica e analítica dos fatos, permitindo com isso sermos manipulados por informações e pela criação de um senso comum que só serve a interesses políticos, incluindo a ciência como instrumento legítimo para fomentar muitas vezes a irracionalidade que é o contrário dela, a ciência.

Precisamos de um antidoto, um remédio para tratar os males da hipocrisia e esse remédio requer um longo caminho, porque teremos que voltar para o século IV antes de Cristo, lá na antiga Grécia. Um tempo em que a ciência e a política começaram e só existiram pela inquietação de pessoas que não acreditavam em historinhas de deuses ou mitos, que tinham respostas falaciosas para todos os fenômenos e encantavam as pessoas que apenas assistiam e  reproduziam essa narrativas.

Foi a partir de um olhar crítico e desafiador de pessoas comprometidas com a verdade, não a verdade absoluta, mas a busca incessante para explicar o inexplicável, que surgiu a ciência, essa mesma ciência que hoje em algumas situações está a serviço da política e do mercado.

Roncalli Guimarães é psiquiatra

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    O conciso e fecundo artigo do Professor e Psiquiatra Roncalli Guimarães, bem nos da uma mostra do quanto somos e estamos susceptíveis, vulneráveis e, sobretudo á mercê do residual histórico da ignorância, onde fragmentos do processo cultural, mormente insertos no pensamento mágico oriundo da cultura religiosa, infelizmente permitindo que o obscurantismo se alargue e avance no tecido social e no seio, inclusive da comunidade cientifica.

    História, ciência, prática médica, interesses econômicos e políticos, miscelânea contemporânea que na atual conjuntura, sobremodo na dinâmica da “revolução” da comunicação, eventual ou contumazmente fraudada e em tempo real, infelizmente enreda, delega e elege supostos líderes, que à só tempo, olvidam o interesse coletivo, levando-nos como povo, nação e país à nefasta possibilidade de voltarmos à idade média, tanto nos costumes quanto na economia.

    Um baraço

    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  2. Genivan de Freitas Vale diz:

    É-me estimulante lê texto tão claro e sensato. O atual momento brasileiro e sua dualidade estéril, tem trazido momentos dramáticos a sociedade. Ciência não somente se faz em laboratórios sofisticados e caríissimos da poderosa indústria farmacêutica. Não podemos esquecer os guerreiros que estão na linha de frente dessa pandemia, fazendo ciência. Ciência sim! Pois a ciência observacional não pode ser ignorada. Não podemos permitir , enquanto profissionais de saúde , que a desconstrução internacional com interesses econômicos, e a descontrução interna, por interesses políticos , ignorem contribuição , sumamente, importante dos colegas multiprofissionais da saúde. Parabéns Roncali pelo texto. Minha homenagem aos vários colegas que morreram na dura labuta contra essa pandemia e aos que ainda estão na linha de frente. O tempo fará jus a essa luta.

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