“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” (Carlos Drummond de Andrade)
O gosto pelas letras chegou cedo. Em casa, entre os mantimentos diários acomodados num balde de alumÃnio, um jornal. Era assim, diariamente.
TÃnhamos as revistas Seleções, O Cruzeiro. Depois apareceram outras notivades da escrita, num tempo em que a televisão não era tão soberana e onipotente.
Revistas em quadrinhos foram centenas, sob o combate da mãe zelosa, que não via nelas qualquer atrativo à minha formação. Enganara-se. Pelo menos dessa feita, enganara-se.
E o que dizer da coleção Tesouros da Juventude? Todos os clássicos infanto-juvenÃs estavam lá. Alexandre Dumas em seus enredo de capa-e-espada, Júlio Verne futurista.
Nesse tempo eu queria escrever. Seria escritor. Jornalista, não. Poeta, quem sabe, heim?
Nem escritor nem poeta. Um repórter provinciano, é o que sou. É o que posso ser, sem perder a admiração por quem o é.
Drummond, Quintana (meu preferido), Manuel Bandeira, Thiago de Mello, Leminski, Castro Alves, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Patativa, Olavo Bilac…
Os nossos, próximos, Marcos Ferreira, Antônio Francisco, Cid Augusto, Cefas Carvalho, Paulo de Tarso Correia de Melo, Luiz Campos…
Aceito, passivamente, a “dádiva” de não ser poeta. Se o fosse, o que seria de mim? Um bardo sem prumo. Coube-me o gosto pelo verbo lapidado por esses e tantos outros escultores. Eu, como um Michelangelo tosco, apenas imploro diante de Moisés: “Parla!”
Enquanto isso, vou-me nessa vida aventureira, um “gauche” sem a poética que anseio. Em busca do paroxismo da frase perfeita.
* Minha homenagem a Carlos Drummond de Andrade, que hoje estaria completando 109 anos: 1902-1987.
Carlos, meu bardo querido, que linda homenagem a um dos poetas que fazem valer a faceta lÃrica, o viés cru e docemente exposto das vÃsceras, a visão letárgica do cotidiano, a complascência face à s misérias e delÃcias do viver. E sorte de nós que te lemos, Carlos, por sabê-lo leitor de gigantes da poiesis.
À guisa também de homenagem ao grande poeta itabirano, segue abaixo uma das pérolas dele, especialmente quando escreve, cheio de nonsense, sobre o “hábito de sofrer, que tanto me diverte (…)”. Poesia transcendente, sim, capaz de escancarar a pequenez e mesquinhez de nossa condição e o gigantismo e potencialidades da nossa porção criadora, vivaz.
Um beijo desta sua web-fã
Confidência do Itabirano
Carlos Drummond de Andrade
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!