Por Marcelo Alves
Common law (a tradição anglo-americana) e civil law (a tradição romano-germânica ou continental) são as duas grandes famílias jurídicas do Ocidente, cada qual com origem e desenvolvimento próprios. Apesar da progressiva interação entre elas, não se pode ainda negar a realidade de tal dicotomia.
Isso implica um modo diferente de enxergar o direito pelos juristas – e, sobretudo, pelos seus “operadores” – de uma e outra família. Como diz José Luis Vasquez Sotelo (em “A jurisprudência vinculante na common law e na civil law”, que consta do livro “Temas atuais de direito processual ibero-americano”, Forense, 1998), “o direito do common law tem tido sempre para os juristas do continente europeu um aspecto misterioso, por sua falta de Códigos e de grandes leis e por estar baseado na experiência”.
Por sua vez, “é conhecida a expressão que alude a que, se um jurista inglês se aventurasse na região da filosofia jurídica do Continente, se acharia como um estrangeiro em um país estranho, com homens que lhe falam um idioma desconhecido (…)”. Há um certo exagero aí, reconheçamos, sobretudo nos dias de hoje, com a globalização e interação digital que vivemos. Mas algumas diferenças eram e ainda o são, em boa medida, curiosas.
Darei dois exemplos quanto ao modo de pensar e à formação dos juristas do common law.
Quanto ao modo de pensar, sobretudo no passado, era bem nítida a distinção entre o operador do direito do common law e o do civil law. Naquele, os operadores do direito (juízes, advogados etc.) consultavam quase que exclusivamente os precedentes judiciais; neste, a legislação. E não há dúvida de que, ainda hoje, o modo de pensar do juiz do common law é diferente do modo de pensar do juiz do civil law. A Inglaterra continua sendo o principal exemplo disso, como expõe Sotelo:
– “Quando um jurista inglês estuda a solução aplicável consultando metódica e conscientemente as coleções de precedentes, após encontrar a solução, ele se pergunta se aquele ponto de vista terá sido modificado por alguma lei, consultando para isto o conjunto da Legislação. Um jurista de civil law busca, no Código ou na lei, a solução para o caso em questão. Um jurista do common law somente vê, na lei, as possíveis exceções à solução dada pelos precedentes vinculativos. Disso, ademais, resulta uma consequência importante: os statutes ou leis em sentido estrito, já que são regulamentações de exceção, devem ser interpretadas restritivamente”.
E quanto aos EUA, registra Eduard D. Re (em “Stare Decisis”, artigo publicado na Revista Jurídica, n. 198, abr. 1994) que Benjamin N. Cardozo (1870-1938), célebre Justice da Suprema Corte, disse: “a verdade é que muitos de nós, criados nas tradições do common law, encaramos a legislação com uma desconfiança que podemos deplorar, mas não negar”. E que Harlan F. Stone (1872-1946), outrora Chief Justice (Presidente) afirmou, sobre essa desconfiança, que “os tribunais do common law têm dado relativamente pouco reconhecimento à legislação, enquanto ponto de partida para formação de suas decisões, se a compararmos à força que emprestam aos precedentes”.
Outrossim, e até mais curiosamente, os grandes juristas do common law, em regra, tiveram sua formação no foro e não nas universidades. A maior prova disso é que, dentre os “antigos”, os maiores tratadistas do direito inglês foram exatamente os grandes juízes. Basta lembrar Bracton (1210-1268), Edward Coke (1552-1634) e William Blackstone (1723-1780), este sempre reverenciado, quando se fala do common law, por sua obra “Commentaries on the law of England” (1765-1770). Quanto ao direito americano é impossível falar dele sem mencionar juízes como John Marshall (1755-1835), Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935) e Benjamin Cardozo, entre outros.
Aliás, lembra Sotelo que Roscoe Pound (1870-1965) quis expressar “a contraposição entre os dois sistemas afirmando que, enquanto o Direito anglo-americano é um Direito dos Tribunais, cujos oráculos são os Juízes, o do Continente é um Direito de Universidades, cujos oráculos são os Professores. A diferença metodológica pode ser representada claramente contrapondo-se um ‘Direito de Juízes’ a um ‘Direito de Catedráticos’”.
Bom, vocês poderiam me contrapor citando o próprio Roscoe Pound, que foi um professor. E um gigante. Ou mesmo Lon Fuller (1902-1978), Herbert Hart (1907-1992), Jonh Ralws (1921-2002) ou Ronald Dworkin (1931-2013). Mas esses últimos foram sobretudo filósofos e não “operadores” do direito. E são mais modernos. Quase de hoje. E as coisas mudam, sabiam?
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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