Por Carlos Santos
Poderia ser outro prenome: Antônio, Francisco, José, Pedro, Paulo. Mas era João. “Seu” João, como a boa educação recomenda na reverência aos mais velhos, como forma de tratamento.
Há anos ele não me via. Mas lembrou. “Sim, é aquele seu amigo magrinho, né?” Em seguida, complementou: “Andava muito lá em casa”.
Testemunhou-nos impassivo, por incontáveis vezes, ouvindo Fagner, Alceu Valença e clássicos internacionais, nos paupérrimos cômodos de sua casa. Acolhedor, via com a maior naturalidade nossos fígados juvenis se enpanzinarem com aguardente. Felizes ou “roendo”. Inconsequentes, como nos cabia.
Corpo mirrado, cabelo liso e ralo, pele tostada por anos de trabalho sob sol causticante, instrução elementar. Poucas eram suas palavras. O sorriso escapava, sem nunca se transportar à gargalhada tão corriqueira a seu filho, meu amigo desde reta final da adolescência.
O câncer o alcançara há algum tempo, sem lhe tirar a serenidade. Seria resignação, uma fé sobrenatural ou desconhecimento da real dimensão do problema? Perguntei-me algumas vezes, mas não quis insistir na caça à resposta. Nem me lancei na impertinência do questionamento às claras.
Só após sua morte, descobri o porquê. Assim, naturalmente, no desabafo do próprio filho, com olhos marejados de lágrima, mas orgulhoso da origem, encontrei o porquê de tanta força no duelo contra o câncer dilacerante.
O nordestino de fibra, afeito à cultura da palavra, impregnado de valores que vão se escasseando, guardara para si e raras testemunhas, uma justificativa para continuar brigando pela vida. Lutava bravamente contra aquela moléstia que o humilhava, rasgava suas artérias e o consumia por dentro, em nome de um compromisso que assumira com sua biografia.
Indiretamente, era parte da herança que deixaria para a família, em especial para o filho amado.
Fez-me recordar Machado de Assis. O escritor de “Dom Casmurro” guardou uma frase conclusiva de livro, em “Memórias póstumas de Brás Cubas”, que por muitas vezes me deixara pensativo:
– Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.
“Seu” João agiu, pensou diferente. Não permitiu que as poucas posses materiais fossem motivo para negar-se à continuidade, através de um filho. Nem desonrou a própria história a contaminar seu herdeiro.
Bem além do personagem machadiano, João, “seu” João, João Félix de Medeiros, era aquele ser humano que podia ter jogado tudo para o alto e se render. Fez diferente, para transmitir a herança da coragem em vez da compreensível covardia e desesperança. Não entregou os pontos.
A morte o tornou mais forte.
Machado não teve a benção da paternidade, por motivos de saúde – dizem seus biógrafos. Mas nem assim definhou ao lado de sua Carolina, a mulher amada. Nem fiquemos a imaginar que Cubas seja seu alter ego, alguém que falava por ele na literatura.
Bem, mas cá estou a digressões literário-filosóficas e termino fugindo da prosa inicial. Fico a reler e reinterpretar a cabeça de Machado de Assis, folhear seus textos, passear pelo Rio de Janeiro imperial e republicano. Esbarro no Cosme Velho, vendo-o sem filhos, sem Carolina que morrera um pouco antes. Doente.
João, “seu” João – sem qualquer projeto ou mania de grandeza -, conseguiu no anonimato de sua vida, ser machadiano. Simplório, sem ser simplista. Puro. Intenso.
O filho, herdeiro do mundo que “seu” João não engrandeceu com qualquer título honorífico, comenda ou ato de bravura em campos de guerra, sabia o que fizera seu pai suportar tanta dor. A confissão tinha sido feita a outro interlocutor da família:
– Eu só estou fazendo esse tratamento e aguentando tudo isso por ele! Meu filho.
Carlos Santos é criador e editor do “Blog do Carlos Santos”
Que crônica!
Ainda aparece um monte de… e bajuladores, metendo processo à torta e à direita em cima de muitos jornalistas competentes. Procurem o que fazer, à justiça está intupida de ações sem futuro, à minha é correta.
Pesquisem!
Pior: Só por que dizem a “VERDADE”!!
Carlos Santos, que lindo seu texto…não pude conter as lágrimas. Painho deixou um legado que dinheiro nenhum do mundo seria capaz de conquistar. Muito obrigada por suas palavaras, Deus lhe abençoe.
NOTA DO BLOG – Boa tarde. Saúde e paz. Reencontrei a crônica por acaso. Comecei a ler e um filme foi passando e passando. Aí resolvi mandar para Eudson. Choramos juntos
Abraços. Cuidem-se
Esse sim. Realmente João Félix, o que fazia transparecer , força, coragem, em certos momentos piadista, sim raros, mas esse texto realmente mostra quem era João Félix , como ele mesmo conferça , tudo pelo seu filho. Que o Onrra grandemente.
Tio João homem de bom coração , prestativo uma pessoa do bem tenho muito orgulho ter convivido com ele