domingo - 20/02/2011 - 18:16h

A mensagem do alpinista

Por Carlos Santos

Eu tinha dúvida quanto ao ano. Confesso uma certa dificuldade para me situar no tempo, quando viajo cronologicamente, com uso apenas do recurso da minha memória. É um GPS inconfiável.

Bem, mas o ano não importava.

O que me parecia fundamental era o fato em si. Sua contextualização, pinçando-o para me situar, é o que me interessava mais.

Como alguém tem coragem de cortar o próprio pulso, com a lâmina de um canivete? Razões? Há-as para tudo, até mesmo para automutilação, raciocinava.

Tirou-me o fôlego a narrativa que ouvi à madrugada, em casa, com a TV sendo minha única fonte de luminosidade e companhia, incidindo sobre meu rosto opaco, num quarto lúgubre.

O sorriso de Aron Ralston, um jovem alpinista norte-americano, de braço erguido e parcialmente amputado, era um contraste com minha apatia. Uma sisudez tocada pela alegria de quem tinha acabado de perder parte do corpo e, assim mesmo, comemorava.

Sim, o ano… vamos a ele. Descobri que foi em 2003. Abril.

A TV era uma presença onipotente diante da cama, praticamente ligada 24 horas por dia. Hoje, não. Até de lá foi expulsa. Está entronizada na sala, sem qualquer pompa. Empoeirada.

Tempos difíceis, de transição, de muitas perplexidades e interrogações. Assim era meu 2003. Quase à beira de um ataque de nervos e em meio a constantes esbórnias. Meio “easy rider” (sem destino). Um Peter Fonda sem motocicleta.

Aron, ao contrário, tomado por um vigor maior, prometia voltar ao Grand Junction, um cânion no Colorado (EUA), que quase o sepultara. Não se intimidara com o infortúnio de ter sido preso a uma rocha, que o obrigou a se livrar de uma das mãos, após quase cinco dias imobilizado e sem ser localizado pelo resgate.

Admitiu que em vários momentos acreditou que não sairia vivo do lugar. Ficara entre a dúvida e a esperança. Mesmo após arrancar parte de seu corpo, ainda teve que rastejar, descer um precipício de 18 metros e andar 10 km, até ser socorrido.

A decisão veio de uma força espiritual, que não soube explicar. Conseguir sobreviver, para recomeçar e novamente encarar quem quase o engolira de vez, era uma segunda chance.

Seria uma sobrevida?

Na verdade, a lição que logo tomei para mim e não paro de rememorar, até hoje, é até simplista: para continuar inteiro às vezes é preciso arrancar uma parte de nós.

É uma medida drástica que por vezes somos obrigados a tomar, mas recuamos. Acovardamo-nos. Cortar a própria carne é morrer um pouco, sim. Contudo pode ser nossa única chance de ficar vivo. Renascer das cinzas, como a lendária Fênix.

Lembra um pouco a alegoria do “Mito da Caverna” de Platão. Continuamos na escuridão porque duvidamos da existência da luz. Limitamo-nos, somos limitados; conformamo-nos com as trevas.

Cometemos o pior dos erros humanos: o da omissão.

Somos levados a acreditar que não temos saída ou qualquer alternativa. Essa tal de felicidade fica por aí, no ar, pairando sobre nossas cabeças, como se fora um Zeppelin, aquele imponente dirigível. A qualquer momento, ela flutua e some, ou desaba em chamas.

Vivemos de ciclos. Para começar um novo é fundamental, em alguns momentos, extirparmos por completo o anterior. Toda escolha corresponde a alguma forma de renúncia.

Só chegaremos ao cume do Everest, o nirvana, abrindo mão de boa parte da “carga” amealhada desde o sopé da montanha. É uma espécie de tributo à vida. Impossível levarmos e termos tudo até o alto.

Talvez resida nesse aspecto, outro grande ensinamento à minha existência. Trato-o como “a parábola da montanha”.

Aron Ralston voltou tempos depois ao cânion, amputado, mas não mutilado.

Entendi assim, a mensagem que me chegara àquela madrugada, pelas “mãos” do alpinista.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Ivana Linhares diz:

    Ameeeei o texto Carlos! Abraço

  2. Aline A. B diz:

    Carlos santos eu amei seu texto a sua crônica. Acho que vai me ajudar a enfrentar o que estou passando agora para tambem cortar o pulso e ficar viva. Muito obrigado e que Deus lhe projjeteja.

  3. Rodrigo diz:

    Que beleza de cronica para um domngo como este.

  4. Fransilvariodejaneiro1963@bol.com.br diz:

    Carlos Santos “A mensagem do alpinista”, “o mito da caverna” e sua “parábola da montanha” são uma riqueza para qualquer pessoa que goste da vida, da leitura e ame o bom texto e só merece parabens. Seu blog nao é um susseso por acaso e nos agradecemos este espaço na internet. Francisco Silva

  5. Aristoteles Soares diz:

    Excelente texto meu caro!! Ideal para uma tarde de domingo. Inspirador para um início de semana, que não deixa de ser um “novo ciclo” em nossa vida!! Apesar de todas as polêmicas que o envolvem quando o assunto é política, o que é totalmente normal nessa área, diga-se de passagem, seu blog continua sendo de acesso obrigatório. Forte abraço, e continue assim, inspirado.

  6. itamar de sousa diz:

    BELA CRONICA CARLOS SANTOS,TEMOS QUE TER A CORAGEM DE ENFRENTAR TDS OS MOMENTOS EM QUE A VIDA NOS PEDE CORAGEM,SO ASSIM RENASÇEREMOS DAS CINZAS…..FÊNIX.

  7. Izaurinha diz:

    vc sempre incandesce-nos em sua tao lida página, com seus escritos..e seu instinto de escritor.. daqueles, dos maiores! para mim sempre, sem igual! genial sua crônica imbuída de esperança !!! assim seja tb todos os seus dias, amigo. abs

  8. Graça Sabino diz:

    Bravo! Bravo! Quando vai nos brindar com um livro/coletania de suas crônicas?

  9. Maria Júlia diz:

    Belíssima crônica. Emocionante de mais, confesso que estou sem folego com cada palavra de sua escrita. Meus parabens e obrigado por algo manis no meu domingio.

  10. MARCOS PINTO - Da AAPOL, ICOP, IHGRN e do IANTT. diz:

    Crônica que emblematiza a realidade sempre presente de que sempre teremos que ousar em quebrar os paradigmas da vida. PARABÉNS MANO!

  11. Mary Costa diz:

    Bárbaro!!!!!Parabéns…

  12. Maria Júlia diz:

    Meu Deus, que crônica belíssma você escreveu carlos santos para seus leitores. Como disse a Mary é realmente “Bárbaro”. Esse alpinista traz uma mensagem muito bonita para todos nós, obrigado.

  13. VINICIUS MAGNUS MEDEIROS DE LIMA - Sindicalista. diz:

    Brilhante crônica! Meus parabéns!

  14. antonio pedro da costa diz:

    Carlos,
    Maravilha!

    Normalmente não acesso a internet aos domingos. Hoje revendo seus escritos, como o faço invariavelmente para iniciar a semana civil, leio essa pérola que você oferece aos seus leitores. Parabéns pelo texto.
    Noutra oportunidade, fiquei igualmente extasiado, com outra crônica que você escreveu no dia de finados, acho que do ano passado. Falava de sua avó/mãe.
    Comparo seus escritos aos do saudoso Dorian Jorge Freire, apesar de nada entender de crítica literária. Apenas leio e pronto e faço meu juízo de valores, de forma autoritária e sem parâmetro ou autoridade qualquer.
    Mas admiro profundamente como você baila com as palavras.
    Obrigado pela reflexão tão atual e tão necessária. Que venham os problemas da semana!

  15. NOTA DO BLOG DO CARLOS SANTOS diz:

    Antônio Pedro, bom-dia. Obrigado pelo comentário quanto a esta crônica. Mais ainda pela generosidade. O jornalista Dorian Jorge Freire era um estilista da língua, capaz de esculpir frases como um artesão. Além disso, culto. Sou um repórter esforçado, que leu muito Dorian, o que talvez me ajude a ser zeloso com a língua. Um abraço. Esta semana será excelente para todos nós. Amém.

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